terça-feira, 14 de maio de 2024

[Matéria] A Influência de Astro City Em Duas Histórias em Quadrinhos Brasileiras

 

 Rodrigo Rosas Campos

    Para falar de Astro City e de sua influência nas duas histórias brasileiras mostradas a seguir, temos que voltar um pouco no tempo e falar de Watchmen. Watchmen foi a mais emblemática das obras que revolucionaram o gênero super-heróis, voltando-o para um público mais adulto e com tramas mais violentas em meados dos anos 1980. Bem verdade que não foi a única, entretanto se tornou a mais emblemática. Tudo o que veio depois tem alguma influência de Watchmen, seja para negá-la, seja para exaltá-la ou mesmo para interpretá-la de forma muito equivocada (quase tudo no início dos anos 1990), mas não antecipemos os sucessos.

    Quando Watchmen desconstruiu os super-heróis, Marvels, Astro City e Reino do Amanhã foram as obras que iniciaram a reconstrução. Por razões óbvias, aqui, vou focar em Astro City, cuja proposta de reconstrução não descarta os personagens violentos da desconstrução. Mas antes de chegar em Astro City, uma pincelada de Marvels se faz necessária.

    Em Marvels, originalmente uma minissérie em 4 edições, Kurt Busiek criou Phil Sheldon, o repórter fotógrafo sem superpoderes na Nova York do universo Marvel, vivendo em meio a super-heróis sem saber tudo sobre eles. Para Phil Sheldon, Peter Parker e o Homem-Aranha não são a mesma pessoa. Assim, a série Marvels é uma história contada da perspectiva de um humano comum de dentro de um universo com super-heróis.

    Perspectiva é a palavra-chave de Astro City, onde usando personagens totalmente próprios, Kurt Busiek (textos), Brent Anderson (desenhos) e Alex Ross (capas e concepções visuais) contam histórias de variadas perspectivas, de personagens humanos comuns, de super-heróis, de super-vilões, de criminosos sem poderes e de vigilantes sem poderes.

    Na visão de Kurt Busiek, autor das séries de Astro City (e de Marvels), super-herói é um arquétipo que pode abarcar todos os gêneros; um contexto amplo que serve para contar vários textos; uma ideia que pode, ao mesmo tempo, criar histórias específicas para todos os tipos de público e de todas as faixas etárias.

    De todos os filhos de Watchmen, Astro City é a série que mantêm as mudanças trazidas pelo desconstrucionismo e retoma a ingenuidade das épocas anteriores num equilíbrio que só foi possível graças ao talento de Busiek para narrar e amarrar eventos e momentos históricos pendulares. Desde a chamada Era de Ouro até os dias de hoje, os quadrinhos de super-heróis e de aventuras em geral oscilaram entre histórias violentas e mais pueris e divertidas.

    Astro City é uma série de minisséries e de edições únicas que mostra que, num mesmo cenário, pode se criar histórias para todos os públicos. Os heróis ideais e os problemáticos convivem em harmonia e cada trama tem sua própria classificação etária. Todas juntas contam a grande história maior, a de Astro City e de seu universo.

    Para que se tivesse tamanha liberdade criativa foi criado um novo universo com personagens próprios que, mesmo quando inspirados em personagens antigos, não carregavam a pecha de serem TMs e de terem a obrigação de gerar lucro com produtos licenciados (filmes, camisetas, bonequinhos etc.), fora o fato de que os novos personagens têm passado, presente e futuro em branco, dando ao escritor um espaço para que, só o que for relevante no momento seja revelado, além dele poder criar tudo do zero absoluto para cada personagem. A história é a prioridade, os personagens têm suas relevâncias relativizadas de acordo com a trama e o tom do que está sendo contado no momento.

    Em Astro City, se ninguém sabe uma identidade secreta de algum super-herói, talvez nem o autor saiba, uma vez que só conhecemos uma identidade secreta quando ela é descoberta pelo narrador ou quando o narrador é, ele próprio, o detentor da identidade secreta. Ou você descobre a identidade secreta do Caixa de Surpresas através de um simples batedor de carteiras que estava no lugar certo e na hora certa ou você lê uma história narrada pelo próprio Caixa de Surpresas. Nenhuma narrativa é em terceira pessoa, os narradores de Astro City, cada um em sua(s) história(s), não sabem tudo de todos e isso é fantástico.

    Astro City é uma série muito premiada nos EUA, mas subestimada no Brasil. Ainda assim, sua premissa influenciou duas histórias produzidas aqui no Brasil que comentarei a seguir. Como qualquer história solta de Astro City, estas duas tramas podem ser lidas até por quem nunca leu super-heróis na vida, uma vez que trazem personagens totalmente novos e livres das amarras de serem TMs destinadas a venda de produtos de consumo diversos.

    Em ordem de publicação original, a primeira história que encontrei com influência direta de Astro City foi de 2007, publicada na revista Garagem Hermética #03, intitulada Tentáculos, com textos de Daniel Esteves e desenhos de Caio Majado. Em Tentáculos, com apenas 4 páginas, vemos um jovem crescido numa cidade grande, entediado com a realidade urbana que torna tudo cotidiano e banal muito rápido.


    Mesmo vivendo num universo onde sua São Paulo (palco da maioria das obras de Esteves) possui super-heróis lutando contra vilões e monstros, nosso entediado amigo nem repara a luta épica que está acontecendo acima dele e que faz todos ao seu redor correrem desesperadamente para um lugar seguro.

    Ou seja, temos a perspectiva de um personagem sem super poderes mostrando como é viver num mundo com super-heróis, sendo que a cidade grande tem o poder de tornar qualquer coisa banal, entediante e cotidiana, e até mesmo os super-heróis e vilões viraram banais, cotidianos e entediantes para nosso amigo. Tentáculos tem um desfecho surpreendente em suas 4 páginas e é mais um testemunho do talento de Daniel Esteves na criação de diálogos. Essa premissa de uso de perspectivas é a mesma que Kurt Busiek usou em Marvels e continuou em Astro City. Tentáculos foi republicada em 2024 na coletânea de quadrinhos do livro Quarto Mundo: A Revolução dos Quadrinhos Independentes no Brasil pela editora Heroica.

    A outra história brasileira inspirada por Astro City foi Dias de Horror, de 2017. Com um orçamento muito maior, foi concebida como uma graphic novel de super-heróis. Feita pelos profissionais agenciados pelo Chiaroscuro Studios, que trabalham para editoras estadunidenses como DC, Marvel etc. É uma história fechada em edição única que traz novos personagens e um novo universo.

    Dias de Horror foi roteirizada por Danilo Beyruth (Bando de Dois) com artes (desenhos, arte final e cores) de: Adriana Melo; Adriano Di Benedetto; Alex Shibao; Allan Jefferson Alisson Borges; Amilcar Pinna; Andrei Bressan; Breno Tamura; Bruno Oliveira; Cris Bolson; Daniel HDR; Daniel Maia; Danilo Beyruth; Diógenes Neves; Dijjo Lima; Eber Ferreira; Eddy Barrows; Eduardo Ferigato; Eduardo Pansica; Fabiano Neves; Felipe Watanabe; Geraldo Borges; Gustavo Duarte; Ig Guara; Ivan Reis; JOK; Joe Prado; Jonas Trindade; José Luis; Júlio Brilha; Júlio Ferreira; Leonardo Romero; Lucas Werneck; Marcelo Costa; Marcelo Di Chiara; Marcelo Maiolo; Márcio Fiorito; Márcio Hum; Márcio Menyz; Márcio Takara; Natalia Marques; Nuno Plati; Oclair Albert; Paulo Siqueira; Péricles Júnior; RB Silva; Ricardo Jaime; Robson Rocha; Rodney Buchemi; Rodrigo Spiga; Rogê Antônio; Ronan Cliquet; Ruy José; Thony Silas; Wesllei Manoel; Yildiray Cinar e Zé Carlos. O produtor do projeto é Ivan Costa e o editor desta publicação foi Sidney Gusman (editor da Maurício de Sousa Produções e do site Universo HQ). Letras e design gráfico de Rodolfo Muraguchi. Capa: Danilo Beyruth (lápis); Joe Prado (arte-final) e Marcelo Maiolo (cores).

    Em resumo, Dias de Horror é o julgamento do vilão Doutor Horror por possível cumplicidade em uma invasão alienígena e das mortes dos três heróis mais importantes daquele universo, Rapina, Solar e Caçador. Como se trata de um julgamento, cada personagem que testemunha mostra sua perspectiva dos acontecimentos, ou seja, nenhum personagem sabe a história completa e o leitor vê a história se completar a partir da união de várias perspectivas. Dias de Horror também é uma filha direta de Astro City que apresenta seu próprio universo e várias perspectivas contando partes e pontos de vistas distintos de uma mesma história.

    Histórias como as da série Astro City, Tentáculos e Dias de Horror deixam três coisas muito claras: a primeira e a mais importante é que os criativos são SEMPRE mais importantes que os personagens, vide também o sucesso maior dos mangás de super-heróis em relação aos comics de super-heróis da DC e da Marvel hoje!

    A segunda é que os autores só possuem liberdade real com seus próprios personagens. Cronologia, cânone e perpetuação indefinida de marcas com fins estritamente comerciais só atrapalham na hora de contar boas e novas histórias.

    A terceira é que só temos a possibilidade de uma boa história quando os personagens não são tratados como vacas sagradas, podendo, inclusive, morrer e/ou passar seus mantos ou funções a sucessores.

    Até aqui, se algum leitor não entendeu nada do que falei, ou melhor, escrevi, veja meu ensaio, Os Filhos de Watchmen (https://literakaos.wordpress.com/2017/02/28/ensaio-os-filhos-de-watchmen-de-como-a-saga-de-alan-moore-e-dave-gibbons-que-desconstruiu-os-super-herois-influenciou-tudo-depois/). Se quer saber mais sobre Astro City, leia Astro City: Uma Cidade Grande para Grandes Super-heróis (https://literakaos.wordpress.com/2016/07/20/astro-city-uma-cidade-grande-para-grandes-super-herois/).


    Boas Leituras e até breve!

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