Rodrigo Rosas Campos
Eis que o mestre (ou algum jogador do grupo) lê um livro de mistério em que o objetivo do protagonista detetive é descobrir quem cometeu o crime, seja um assassinato ou um grande roubo. Como levar isso para a mesa de RPG? Bom, qualquer sistema genérico pode rodar uma aventura em que o objetivo é descobrir o criminoso. Aqui, está claro que o cenário propriamente dito pode ser a cidade em que o grupo vive e joga e que cada aventura será um mistério diferente, com um novo elenco de NPCs que serão: as autoridades (que podem ou não serem recorrentes), os suspeitos, as vítimas, as testemunhas etc. e que os jogadores são os detetives que terão que descobrir quem matou (ou roubou etc.).
Tendo o clima de investigação como premissa, o mestre usará a regra de ouro para selecionar as regras mecânicas que se encaixam nela e os jogadores terão que criar os personagens para desvendar o mistério apresentado pelo mestre. É neste ponto que todos os membros da mesa, tanto o mestre como os jogadores, deverão conhecer ao menos o básico do sistema usado. Assim, cada jogador saberá qual é o papel do mestre e como o papel dele e de cada um dos outros jogadores se complementam para a construção de uma história coletiva e divertida, o objetivo último de uma aventura ou campanha de RPG.
Como meu sistema favorito é o 3D&T, é este que usarei como exemplo. “Mas o 3D&T é roubado! Feito para batalhas de mangá surreais e épicas!” - Bom, o 3D&T é genérico, podemos rodar qualquer história com ele. Agora, vamos a regra de ouro para selecionar e usar as regras do sistema 3D&T que se encaixam em histórias de mistérios e detetives.
Para início de conversa, se elimina a magia; todo personagem é humano com força máxima zero; qualquer vantagem que seja impossível de se explicar por motivos de treino ou talento natural está proibida até para os NPCs; todos possuem munição limitada a 0 ponto; e, de acordo com o contexto criado pelo mestre, as regras do capítulo 6 de Mega City poderão ser usadas. Importante: mesmo nesse capítulo 6 de Mega City, algumas regras, vantagens e desvantagens, foram pensadas para vigilantes fantasiados ou super-heróis, estas estão barrados aqui em mistérios e detetives.
Com as devidas mudanças e considerações específicas, isso deverá ser feito com qualquer sistema genérico que o mestre escolha para rodar a história de mistério e detetives. Daemon, G.U.R.P.S., Calisto 2.0, C4, Ópera etc.
Ambientação
Aqui tem mistérios. Você é um detetive e deve desvendar os mistérios propostos pelo mestre. As tramas possíveis são:
Um assassinato. É imprescindível descobrir quem matou ou o crime ficará impune.
O roubo de uma joia valiosa. É preciso descobrir quem roubou ou ela será vendida na ilegalidade.
O roubo de uma obra de arte. É necessário descobrir quem roubou ou ela será vendida na ilegalidade.
Um(a) inocente foi incriminado(a). Urge provar sua inocência ou uma injustiça será cometida.
Uma dama misteriosa procura os detetives dos jogadores e é melhor ouvi-la ou uma informação valiosa pode se perder para sempre.
Um suspeito(a) em fuga. É melhor capturá-lo ou ele(a) escapará!
Note que alguns destes motes são complementares, não excludentes. O suspeito em fuga pode ser alguém desesperado, não necessariamente o culpado. A pessoa incriminada deverá ter algum benefício com o crime, caso contrário o(a) criminoso(a) não a teria incriminado. É importante também que o cenário propriamente dito seja mostrado ou descrito de forma a dar pistas aos detetives/jogadores. Mais detalhes daqui há pouco.
Mas que personagens os jogadores podem criar? São exemplos:
Um(a) Garoto(a) enxerido(a) que quer ser detetive. Ele(a) será subestimado(a) por todos e pode ser considerado(a) bem inconveniente pelos detetives profissionais, policiais, particulares ou repórteres criminais, mas poderá se mostrar genial se o jogador tiver malícia para contornar isso.
Em regras de 3D&T, ele(a) terá má fama (-1 ponto) enxerido(a), mas pode ter genialidade (1 ponto) como talento natural.
Detetive particular contratado(a). Com uma inteligência acima da média e experiência esse tipo de personagem é contratado pelos interessados no caso para resolvê-lo. O mais famoso deles, Sherlock Holmes, foi muitas vezes convocado pela própria polícia de Londres para ajudar em investigações truncadas.
Em regras de 3D&T pode até possuir investigação completa (2 pontos, manual básico), mas não poderá ter poderes legais (1 ponto, Mega City). Esse tipo de personagem costuma ter genialidade (1 ponto) e adaptador (1 ponto), ambas vantagens do manual básico de 3D&T.
Detetive investigador(a) da polícia. Este possui autoridade estabelecida, tem poder legal (1 ponto) para agir. Note que, mesmo que um ou mais jogadores escolham este tipo de personagem, o mestre terá que criar outros policiais como NPCs. É interessante que o delegado responsável pela delegacia do jogo seja um NPC obrigatório.
Repórter policial. Sua maior vantagem é uma vasta experiência em investigação de crimes.
Isso em regras de 3D&T pode ser a combinação de especializações de arte, crime e investigação. Não possui poder legal, mas não tem a má fama do garoto(a) enxerido(a). Ainda que o(a) repórter policial tenha má fama, não será por ser subestimado(a).
Médico(a) legista. Possui as vantagens de conhecer medicina legal, ter poder legal (estar a serviço da polícia) e acesso ao laboratório pericial. Mas este, o mestre já pode ou não reservar como NPC.
Perito(a) da polícia. Tem como vantagens o poder legal (trabalha para a polícia) e acesso ao laboratório pericial. O mestre também pode querer que este seja um NPC obrigatório.
Para efeito de regras de 3D&T, a diferença do(a) perito(a) para o(a) médico(a) legista estará no tipo de conhecimento. O(a) médico(a) entenderá da parte médica ao passo que o(a) perito(a) terá um conhecimento científico mais abrangente, ciências completas ou especializações que complementem a medicina do(a) médico(a) legista.
Tanto o médico legista quanto o perito e os policiais precisam entender de leis. É aconselhável que os detetives particulares também. Muitos detetives particulares da literatura, TV e cinema são descritos como ex-policiais.
Outros Detalhes
Os lugares, personagens do mestre e eventos a espera dos jogadores terão que ser bem detalhados para que o grupo consiga chegar a uma conclusão.
A cena do crime deve ser montada de acordo com o crime cometido, assassinato e roubo são diferentes crimes. Roubo de arte é diferente de roubo de joias ou dinheiro. Roubar um quadro é diferente de roubar uma escultura etc. Em uma cena de crime, pode haver a presença de um policial responsável, que pode gostar ou não de ver os jogadores. Os jogadores devem estar atentos para alguma prova negligenciada pelos policiais e detetives NPCs que passaram por ali.
Na galeria de arte roubada, ou os jogadores conseguirão falar com o curador ou não. Em todo caso, talvez haja uma exposição em andamento, pois, apesar do roubo, a vida segue. Isso dependerá do delegado (NPC) e em quanto tempo a cena do crime ficará interditada.
Na joalheria o dono da loja poderá estar ou não desesperado. Em todo caso, outras joias e relógios continuam expostos a venda.
Na mansão da vítima podemos encontrar a governanta e fotos da vítima com um ou mais suspeitos.
No boteco pé sujo, o balconista pode ter visto alguma coisa, fora os demais frequentadores mal encarados que bebem ali. Pode ser o bar mais frequentado por um informante confiável etc.
O laboratório pericial possui um técnico de laboratório (ou um papiloscopista) com instrumentos diversos de análises e um computador a serviço do(a) perito(a) e do(a) médico(a) legista.
Outros elementos que podem ser relevantes são:
A existência de algum informante que pode ser útil ao caso. Se ele ajudará por boa vontade ou se os jogadores terão que barganhar um preço em dinheiro ou favor. Se a informação dele realmente vale a pena etc.
Provas, onde elas serão encontradas? O que é preciso para que um objeto comprometa um suspeito? Etc.
A vítima de roubo tinha seguro? É preciso verificar isso. A apólice está em nome de algum outro beneficiário? Onde está este documento? Existe alguma evidência de fraude contra o seguro?
O testamento precisa ser examinado. Quem são os herdeiros da vítima?
O que diz o laudo da autópsia?
Se algum jogador tem acesso ao banco de dados da polícia, que informações confidenciais podem estar ali e ajudar no caso? Há algum suspeito de agora que já fora inocentado por falta de provas ou provas inconclusivas anteriormente?
Só o(a) perito(a) da polícia e o(a) médico(a) legista estão autorizados(as) a usar o laboratório pericial. Mas algum detetive particular pode ter acesso a um laboratório próprio ou de outros.
NPCs suspeitos são fundamentais e deverão ter características e motivações.
Em regras de 3D&T elas podem estar espalhadas em vantagens, desvantagens e na história do personagem. Sendo que tudo o que não for regra mecânica é pura história, mas essa história pode ou não colaborar como indício de inocência ou culpa.
Vamos a alguns exemplos:
Abigail Brito, refinada, entende de arte e é herdeira de uma grande fortuna.
Breno Costa, refinado, entende de arte e é herdeiro de uma grande fortuna.
Celina De Sousa, governanta, bem-educada e tem muitas dívidas.
Dionísio Cardoso, mordomo, discreto e tem dívidas.
Elisa Borges, executiva, ambiciosa, almeja o controle da empresa.
Fábio Linhares, executivo, ambicioso, quer montar sua própria firma.
Todos podem ser suspeitos tanto de roubo quanto de assassinato, mas pessoas refinadas tenderão a ser mais suspeitas do roubo de arte. Podem conhecer receptadores em potencial, saberão retirar um quadro (ou escultura) do lugar sem danificá-lo(a) etc. Qualquer um pode roubar joias e dinheiro.
Quem tem maior chance de ser o assassino(a) do magnata? O herdeiro direto, o empregado endividado e desesperado, ou o sócio que quis dar um golpe na firma e estava prestes a ser desmascarado?
Os suspeitos podem e devem testemunhar uns contra os outros em qualquer caso ou combinações de casos.
Não conheço sistema de RPG que tenha herdeiro de uma fortuna como parte das regras mecânicas. Mesmo a riqueza em 3D&T, por exemplo, só garante um modificador na rolagem de moedas iniciais, o sistema não dirá como o personagem adquiriu sua riqueza, isso é determinado pelo contexto combinado entre mestre e jogador, pela história de cada personagem jogador que possui riqueza.
Se o crime foi um assassinato, qual foi a arma do crime? Veneno, tiro, facada etc.? Se arma de fogo, quais suspeitos sabem atirar? A arma do crime poderá ser definida pelo laudo ou pelo depoimento de algum personagem. E aqui entramos no terreno do mestre. Ele terá que criar uma ou mais soluções possíveis dentro de sua ambientação.
Se o mestre decidir que o(a) culpado(a) é o(a) personagem X e os jogadores errarem, ninguém ganhará pontos de experiência. Neste caso, o mestre deve trabalhar para que a maioria dos indícios e das pistas apontem o(a) único(a) culpado(a). Mas o mestre pode dar a cada suspeito uma motivação viável e ver como o grupo chegará ao culpado de acordo com a interação dos PCs entre eles e com os NPCs. Neste caso, sugiro que ao menos um NPC seja inocente de todo e que o mestre puna o grupo que o condenar. Afinal, não é justo que o jogador chame seu detetive de Sherlock Holmes, dê a ele várias perícias, altos atributos e características e o personagem faça todo o serviço por rolagens de dados enquanto o jogador, ele mesmo, não sabe somar 2+2 e chegar a 4.
Outra alternativa, mais complicada, que o mestre poderia usar seria a de criar as fichas dos jogadores e distribuí-las aleatoriamente. Neste caso, um dos jogadores seria o culpado e tentaria incriminar os outros e atrapalhar os detetives. Ao passo que os outros jogadores interpretariam os suspeitos inocentes que tentariam ajudar os detetives, mas a desconfiança seria generalizada e isso geraria um jogo bem narrativo com um PvP intelectualmente desafiador.
Concluindo, quanto maior for o número de livros de mistério e suspense lidos pelo mestre e pelos jogadores, mais recursos o grupo terá para levar até a mesa de RPG esse tipo de ambientação. RPG é um jogo em que se interpreta personagens, que se joga dados, que se cria histórias e que se lê também, afinal, os ingredientes de uma boa história passada podem se encaixar no caldeirão de suas histórias atuais.
Esta matéria foi publicada no Literakaos, republicada pela revista Tokyo Defender #12. Obrigado, pessoal do Literakaos e da Tokyo Defender!
Boas leituras, boas aventuras, boas campanhas e boas rolagens!