Nossos
Erros
Mery
Campos
Durante
nossa vida cometemos inúmeros erros.
Alguns grandes outros
insignificantes.
Mas alguns marcam nossa vida de um jeito que
nunca esquecemos...
Olhei em volta, para os meus amigos e vomitei de novo. Eles riam
estupidamente, como se uma garota de 17 anos bêbada fosse a piada do
século. Mas eu não era a única.
Estávamos em 5 amigos, duas
garotas e três garotos. Eu estava tonta e minha cabeça doía. Toda
vez que eles riam eu sentia vontade de bater neles, não só pelo
barulho irritante, mas pelo jeito deles.
Minha amiga estava
falando enrolado e os garotos estavam se aproveitando da falta de
inibição das brincadeiras dela. Eu parecia a única prestes a
entrar em coma ali mesmo na rua.
-Aposto como você não tem
coragem de tirar a camisa aqui! -desafiou um deles. Ela riu e simulou
um strip tease, mas não chegou a tirar a roupa. Eles prendiam a
respiração com a ousadia dela, e ela se exibia demais, sem medo nem
restrições.
Eu joguei minha garrafa na rua, ela voou e fez um
barulho estridente quando se espatifou no chão.
-Querem saber? Vocês são uns
merdinhas! -eu disse, meio enrolada com as palavras, caminhando em
direção a eles. -Isso não mostra coragem! -e cuspi.
Eles me
olharam com os olhos arregalados, se olhavam e soltaram uma
gargalhada. Aquilo me ferveu o sangue.
-Vamos... Digam o que eu
devo fazer pra mostrar a minha coragem?
Eles pareciam estar
gostando daquilo, mas de um jeito diferente do meu.
-Desafiamos
você a tirar suas roupas também! -e riram. Ah! Como aquilo me
irritava.
Um
deles se aproximou e mexeu na alça da blusinha que eu estava usando.
-Se
quiser eu posso tirar pra você! -e riram mais ainda.
Eu
coloquei a mão no peito dele e empurrei pra trás.
-Não! Eu quero um desafio de
verdade. Alguma coisa que ninguém normal tenha coragem de fazer...
Eles riram e se olharam, falaram algumas coisas, mas eu não
conseguia ouvir e desisti de entender depois de alguns minutos. Minha
amiga, estava sentada encostada em um poste.
Eu
me senti mal por ela. Sempre vaidosa até metida demais. E agora
estava ali, sentada no meio da rua, bêbada e nas mãos daqueles
idiotas que nós duas mal conhecíamos.
Se fossemos mais
responsáveis, se ouvíssemos mais as pessoas que realmente nos
querem bem em vez de ser sempre tão... Sempre tão...
-Gracinha.. então você quer um desafio de verdade? -disse um deles
interrompendo meus pensamentos e me fazendo virar.
-Fala aí!
O que vocês fazem nessa cidade quando querem provar que são
corajosos de verdade? -eles se olhavam e por um segundo fiquei com
medo. Mas a bebida e o fato de meu pai ser um pouco importante
naquela cidade idiota, eu encarei eles.
-Você conhece o
cemitério que tem aqui perto? -disse um deles.
Logico que eu
conhecia, mas onde ele queria chegar? Esperei ele continuar. Ele riu
e continuou, já que eu não parecia com vontade de responder.
-Desafiamos você a passar a
noite lá.
-Hã? -Eu fiz uma careta. Tinha pensado em muitas
coisas, mas não tinham nada haver com o cemitério. Aquilo parecia
tão infantil.
-E aí? -disse um deles com impaciência -Se
você não quiser ir fala logo, já já amanhece e não vai ter mais
graça -e eles se olhavam
dando risadinhas.
Minha cabeça
doía muito e eu estava confusa. Como aquilo tinha começado? Mas
como ele mesmo tinha dito, já estava prestes a amanhecer e eu tinha
começado aquilo.
-Tá! Vamos logo com isso! Eu quero voltar
pra casa! -eu disse colocando uma mão na cabeça.
Um deles,
parecendo adivinhar meus pensamentos, olhou minha amiga e disse:
-Vão vocês, eu fico com ela.
Depois vocês me contam como foi!
Me contam como foi! Aquilo
soou de um jeito estranho, mas eu estava com tanta dor de cabeça e
cansada que eu não pensei nas possibilidades de significados.
Caminhamos em direção ao cemitério que ficava a algumas quadras
dali, e chegamos ao portão que estava encostado. Eles falavam
durante o caminho, mas eu não conseguia ouvir e nem estava prestando
tanta atenção. Minha cabeça doía muito.
-As
regras são simples: você entra, fica lá no meio até clarear o dia
e depois pode sair. -os dois se olharam e ele continuou -Nós dois
ficamos aqui.
De fato era tudo muito simples. Eu não
acreditava em nada sobrenatural e logo amanheceria e eu poderia ir
pra casa.
-Tá certo. Mas o que eu ganho quando eu conseguir?
-perguntei. Com certeza essa brincadeirinha merecia um premio.
Os dois se olharam e riram baixinho.
-Podemos garantir que você não
se esquecerá dessa noite!
Aquilo foi a gota d’água!
-Tá, o que vocês estão pensando em fazer? Me assustar?
Perguntei mais nervosa do que realmente estava.
-Acho que você
está com medo de entrar e fica mudando de assunto pra tentar fugir
do assunto... -disse um deles com cara de ofendido. -Oras, se você
não quer entrar, fala logo que nós te deixamos em casa.
-Tá.
Eu vou entrar." eu disse. Minha cabeça doendo bem mais.
Eles abriram o portão fazendo um barulho muito alto. Ele não estava
trancado, mas enferrujado. Entrei e sem olhar pra trás, caminhei em
direção ao centro do cemitério. Percebi que não ouvi o portão
fechando e estranhei.
Estava escuro demais lá dentro. As
arvores e cruzes eram apenas vultos ao redor e eu tropecei algumas
vezes durante o trajeto.
Finalmente ouvi o barulho do portão,
não muito alto o que me fez perceber que eu já havia andado
bastante. Nesse momento tive a sensação de alguém passando a mão
pelo meu braço. Uma mão fria demais pra noite o que fez meu braço
inteiro arrepiar. Toquei o lugar onde a mão passou e estava gelado.
-Devo estar muito bêbada mesmo. -pensei e tateei uma arvore
próxima para me encostar.
"Por favor, vá embora!"
ouvi uma voz bem perto dizer. Dei um pulo. Era uma voz feminina
estranhamente familiar, o que me assustou mais.
Olhei em volta,
mas não se podia ver nada naquela escuridão. A lua só permitia ver
fracamente as arvores e cruzes mais próximas, mas não havia ninguém
perto o suficiente para ser visto.
"É
só a minha imaginação! É só a minha imaginação!!" eu
tentava acreditar, mas não entrava na minha cabeça
que aquilo
não era real, que era só a minha imaginação com ajuda do álcool.
Encostei na arvore e deslizei até sentar no chão. Minha cabeça
doía muito eu queria chorar. Mas, pior que isso
era a sensação
de estar sendo vigiada. Como se tivesse alguém muito perto olhando
meus movimentos.
"Saia daqui agora!" era a mesma voz.
Eu arregalei os olhos, mas não vi ninguém. Coloquei as mãos no
ouvido e
disse
-Vá embora! -apertando os
dentes. Sem duvidas estava bêbada demais.
Novamente as mãos
geladas seguraram meus pulsos e me puxaram com força pra frente.
Como eu estava sentada caí meio de lado e novamente arregalei os
olhos. Não havia ninguém.
-Quem está aí!? -perguntei
tentando superar o medo que ia até os meus ossos e me fazia tremer.
"Saia já daqui!" a voz estava nervosa.
Eu
não pensei em mais nada. Me levantei e comecei a andar rápido em
direção à saída do cemitério. Um vulto chamou minha atenção.
Devia ser um dos garotos tentando me assustar.
-Olha, isso não
tem a menor graça! -de repente o vulto veio na minha direção. Era
a figura de um homem, mas como estava contra a luz da rua, eu não
conseguia ver quem era.
"Corra!" disse a voz, me
fazendo pular. Antes que eu me refizesse do choque, sentir uma batida
muito forte na minha cabeça. A minha visão ficou nublada e eu
desmaiei.
Não
sei exatamente quanto tempo se passou. As coisas estavam confusas pra
mim, minha cabeça ainda doía
muito, e aos poucos eu fui
despertando.
Uma luz muito forte fazia meus olhos arderem, mas
eu não queria acordar. Eu tinha medo de ver onde estava e começar a
me arrepender das coisas que eu tinha feito na noite anterior. Eu
tinha medo de lembrar tudo que havia acontecido na noite anterior.
Aos poucos fui abrindo os olhos e vi que estava no cemitério, mas
não perto da entrada e sim quase no meio, onde havia parado antes.
Estava enjoada, e meu corpo estava dormente. Meus olhos ainda estavam
se adaptando a claridade e eu via tudo como se fosse um sonho.
Levantei, mas uma tontura muito forte me fez cair de joelhos. Minha
garganta estava seca -resultando da bebedeira da noite anterior- e eu
precisava mesmo de água gelada ou um café bem forte.
Precisava me levantar e ir pra casa. Meus pais deviam estar
preocupados e provavelmente, depois de ontem, eu estaria de castigo
pelo resto da minha vida.
Levantei de novo com um pouco de
dificuldade e caminhei devagar até me ver fora do cemitério. As
ruas estavam vazias, mas ainda era cedo e por ser domingo, as pessoas
ainda deviam estar em casa.
Me sentia sendo vigiada o tempo
todo, olhei para trás muitas vezes mas não vi ninguém e por estar
em uma rua deserta isso me deixou com mais medo.
Entrei em
casa, esperando ver meus pais na sala, mas não havia ninguém.
Parecia um sonho, tudo estava meio desfocado.
Andei pela casa
chamando pelos meus pais, mas não vi ninguém. Fui até a cozinha,
mas não sabia o que fazer ali, apesar de a garganta estar ardendo e
seca, eu não estava com sede.
Achei melhor avisar os meus pais
que eu já estava em casa. Saí da cozinha e subi as escadas
correndo, a porta do quarto dos meus pais estava aberta e eu espiei,
mas a cama estava arrumada.
Ou eles saíram muito cedo ou eles
passaram a noite me procurando. De qualquer jeito, eu estava ferrada!
Desci
para a sala e percebi que a luz tinha caído. Olhei pela janela e vi
que já estava anoitecendo.
-Que merda esta acontecendo aqui!?
-eu pensei.
Era uma situação no mínimo estranha e muito
assustadora. Sentei no sofá e pensei que tudo tinha uma explicação
logica.
Talvez eu tivesse acordado tarde, talvez por isso meus
pais já não estivessem em casa e talvez por isso eu tenha tido essa
impressão de que estava escurecendo muito cedo.
Isso foi o
suficiente pra me acalmar, decidi não mais pensar nisso, logo tudo
estaria respondido.
Sentei no sofá e fiquei olhando a parede.
Minha cabeça doía um pouco, mas não me incomodava como
antes,
procurei alguma revista ou livro pra me distrair até meus pais
voltarem. E vi um livro grosso com
capa dura branca em cima da
mesinha de centro.
-O que é isso? -falei curiosa. E peguei
para dar uma olhada.
Nesse instante uma sombra chamou minha
atenção. Alguém havia passado correndo pelo corredor, mas eu só
tinha conseguido ver só um vulto e não ouvi nada. Lembrei-me da
sensação de estar sendo vigiada, e isso me
deixou mais
nervosa.
-Quem esta aí? -perguntei, não ouvi som nenhum. Me
levantei e levei o livro comigo, andei devagar até a cozinha mas não
vi ninguém lá. E juntei aos 'talvez' a ideia de que eu podia ter
imaginado aquilo também.
Decidi voltar para a sala e dar uma
olhada no livro que eu estava carregando.
Me sentei
confortavelmente no sofá e virei a capa.
"Nascida no dia 17 de
janeiro a mais bela flor que havia
brotado do meu jardim: Minha
Jasmim!"
Era
a letra da minha mãe e estava falando de mim. Que lindo! Talvez
minha mãe estivesse preparando algum álbum de família. Aquilo me
deixou emocionada.
Abaixo da descrição tinha uma foto minha
recém-nascida, ainda no hospital. Senti uma lagrima rolando pelo meu
rosto e sorri. Virei uma pagina e vi outra foto minha, com 1 ano de
idade. Abaixo da foto estava escrito:
"Jasmim mostrando seus
dentinhos, meu anjo que veio do céu!"
Cada foto marcava alguma coisa
importante na minha vida. O primeiro passinho, o primeiro dia de
aula, festas de aniversário,... Todos os momentos significantes para
mim e minha família.
Eu percebi que ria e chorava das
lembranças que elas traziam, e me emocionava muito com o que minha
mãe
havia escrito debaixo delas.
As fotos foram
passando e eu percebi que tinha chegado ao fim do álbum, virei a
ultima pagina e vi uma foto que eu tinha tirado semana passada.
Que estranho àquela foto não marcava nenhum momento importante.
Corri os olhos pela página e li a legenda.
Nesse momento, o
álbum escorregou das minhas mãos e foi parar nos meus pés.
Tudo girava ao meu redor e eu estava tonta. Fiz muito esforço pra me
lembrar da noite anterior, minha cabeça doía muito.
A casa
estava escura, fria. E eu precisava sair dali.
Olhei a porta e
pensei em dar uma volta. Respirar um pouco poderia me ajudar a
lembrar de tudo que havia acontecido.
E talvez ajudasse a
passar essa dor de cabeça que insistia em me perseguir.
Abri
a porta e dei um grito. Eu estava novamente no cemitério. Mas não
no meu corpo, era como se eu estivesse
assistindo à noite
anterior. Eu 'me vi' entrando pelo cemitério e os dois garotos me
olhando do lado de fora do portão, depois de um tempo que eu havia
entrado, eles olharam pra ver se alguém os
estava vendo,
fecharam o portão e também entraram.
Eu sentia que era ali
que estava o perigo e pensei em um jeito de me ajudar. Lembrei-me da
voz na noite anterior, agora eu sabia por que ela era familiar: era a
minha voz.
Mas não conseguia sair do lugar, não sabia como
me mexer. Eu olhava cada movimento meu e cada movimento deles, eles
com certeza não tinham boas intenções.
Eu estava com muito
medo do que estava acontecendo eu precisava 'me' salvar. Pensando
nisso, eu dei um grande impulso pra frente e tentei pegar 'meu'
braço. E vi minha mão deslizar como se fosse uma nuvem através do
'meu' braço.
Arregalei os olhos e olhei para minha mão, ela
ainda estava inteira. Mas isso não diminuiu a vontade que eu estava
de sair correndo -e gritando- dali.
Olhei para 'mim' e vi que
apesar de ter levado um susto, eu continuava andando em direção ao
centro do cemitério. E sabia que o tempo para fazer alguma coisa
estava se esgotando.
Andei até ficar na 'minha' frente e
comecei a falar, gesticular, chorar,... Mas nada parecia chamar a
minha atenção. Fiquei com tanta raiva e medo, olhei pra 'mim' e
disse:
-Por favor, vá embora! -e vi que
isso, de alguma forma tinha chamado a 'minha' atenção. Por um
segundo eu tive esperança de que tudo teria um final diferente. Mas
logo, percebi que 'eu' iria ignorar isso também.
Mas ali
estava a resposta pra minha angústia. Eu tinha conseguido chamar
minha atenção e precisava usar isso de alguma forma.
Olhei
para os garotos e eles estavam olhando para 'mim' de longe. Olhei
para 'mim' de novo e me aproximei.
-Saia daqui agora! -eu disse
ficando nervosa por ter entrado naquela confusão. Mas, fiquei com
muito mais raiva, quando me vi colocando as mãos no ouvido e falando
"Vá embora!"
Que droga, 'ela' devia estar indo
embora, na verdade, nem era pra estar ali. A raiva me deu uma energia
que eu não tinha sentido antes e eu segurei meus pulsos com força e
puxei para frente.
Quando eu percebi o que tinha conseguido
fazer, soltei 'meus' pulsos e olhei minhas mãos. Eu tinha conseguido
ter um contato físico.
Olhei pra 'mim' e vi o quanto estava
assustado com tudo aquilo. Aproveitei-me da raiva e do medo que ainda
sentia e gritei:
-Saia já daqui! -e vi que dessa vez teve
algum efeito.
Eu
vi o quanto estava apavorada e tentei segurar a minha mão de novo,
foi em vão.
Eu me senti estranha, aquele toque deu uma
sensação de formigamento na minha mão, e eu fiquei distraída, mas
lembrei de que algo muito ruim estava pra acontecer.
Mas pelo
menos 'eu' já caminhava em direção à saída do cemitério, porém,
nervosa demais pra estranhar que havia só um cara perto do portão.
O outro havia se escondido atrás de uma arvore e estava
praticamente invisível segurando um pedaço de pau que parecia um
tronco de árvore. Ele olhava com atenção para mim e embora
parecesse nervoso ria de vez em quando para o amigo.
Senti um
calafrio correr todo meu corpo inteiro e tentei correr pra perto de
mim, mas minhas pernas não me obedeciam. Eu estava desesperada.
Queria gritar, mas não saia nenhum som da minha boca.
A
sensação era de estar em um pesadelo, daqueles que a gente corre e
corre mas nunca alcança o objetivo. Vi quando o cara acertou 'minha'
cabeça eu caí de joelhos e de olhos fechados senti alguma coisa
escorrendo pelo meu pescoço abri os olhos e passei a mão: era
sangue.
A dor de cabeça voltou muito forte e eu fiquei tonta.
E via alguns flashes -algumas vezes dentro do meu corpo-
deles
me atacando.
Eles rasgaram minhas roupas e
enquanto um me estuprava o outro me segurava e o outro fez a mesma
coisa. Eles me bateram muito e riam quando eu chorava ou tentava
lutar. Tudo em vão.
A pancada na cabeça tinha me deixado sem
forças, eu mal conseguia falar. Eu mal conseguia abrir os olhos. Meu
corpo inteiro parecia triturado, estava realmente doendo muito.
Aí, eles pararam, eles se levantaram e um deles pegou de novo a
madeira e bateu com força na minha cabeça.
E dessa vez, eu
não desmaiei apenas. Eu fechei meus olhos e sabia que tinha sido o
fim.
Quando abri meus olhos, eu estava fora do meu corpo e
olhei para onde eles haviam me deixado. Eu estava coberta de sangue e
machucados.
Eu me sentia estranha. Estava com uma angústia
muito grande, queria chorar, queria sair dali, queria que tudo fosse
um sonho.
Pensei em como minha família
estaria se sentindo. Pensei principalmente na minha mãe e senti
vontade
de chorar. O dia estava amanhecendo e eu fechei os
olhos, sentia tanta vontade de estar em casa.
Quando abri os
olhos, eu estava na sala da minha casa, eu nem tentei entender como
tinha chegado lá, de repente as coisas não precisavam de respostas.
Eu
vi meu pai descendo a escada com o jornal na mão, ele sentou em sua
poltrona e abriu em alguma pagina para começar a leitura, colocou
seus óculos e colocou um pé em cima do joelho. Ele não me viu,
lógico.
-Beto, você já quer o seu café? -gritou minha mãe
da cozinha, a voz dela me fez sentir um vazio no estômago.
-Claro meu bem, você pode me trazer? -respondeu meu pai.
-Já
vou. -gritou ela de novo. E de novo tive a sensação estranha. Eu
queria vê-la.
Caminhei devagar até a porta da
cozinha - não, foi diferente de caminhar, eu tinha a sensação de
flutuar. E quando parei na porta da cozinha eu a vi pegando alguma
coisa no armário e voltando para a pia.
Ela
estava diferente, mais magra. Eu me aproximei e vi que ela colocava
leite em uma vasilha.
Vi que tinha uma marca que ia do polegar
até o meio do braço entre a mão e o cotovelo. Ela devia ter
tentado se matar quando soube que eu morri.
"Ai, mãe...
o que você fez?" eu perguntei me aproximando.
Ela parou
o que estava fazendo e olhou para frente. Por um momento eu tive a
impressão de que ela tinha-me
ouvido. Tudo ali parecia fora do
lugar, apesar de estar sempre arrumado. Era como se tivessem paredes
de vidro em toda a casa que limitassem os movimentos e tudo fosse
feito com cuidado pra não esbarrar nelas.
Eu sabia que tinha
que deixar minha família em paz. Que eles precisavam seguir com a
vida deles. Mas era
tão difícil dizer adeus.
Decidi
que era hora de me despedir de tudo que eu conhecia. Andei pela casa,
fui primeiro ao meu quarto, olhei minhas coisas. Parecia que tudo que
eu tocava me mostrava uma história, um pedacinho da minha vida.
Eu tinha tantas lembranças ali. Ali era o meu Mundo. Era onde eu
queria estar. Depois fui andando pela casa toda. Revi as fotos, os
enfeites, as cores nas paredes, até uma marcação que eu tinha
feito da minha altura com o passar dos anos. Uma lembrança pura de
dias vividos com a minha mãe.
Os desenhos nas paredes do
escritório do meu pai. Cada um com um significado especial. Eram os
presentes que eu dava quando pequena nos dias dos pais, natais.
Agora eu via as coisas de forma diferente. Agora eu realmente as via
como lembrança. Agora elas eram parte do quebra-cabeça que formava
minha vida.
Olhei tudo várias vezes para ter
certeza de que não ia me esquecer de nada. E quando dei por mim já
era noite. Meu pai estava deitado, e eu me aproximei dele, sentindo
falta das historinhas que ele me contava antes de dormir.
"Eu
nunca vou me esquecer de você, pai. Você sempre foi meu herói e
meu anjo da guarda. Eu nunca tive medo de nada perto do senhor.
Obrigada mesmo por tudo que o senhor fez por mim. Eu sei que nem
sempre fui uma pessoa agradável e nem sempre ajudei na convivência
como deveria. Hoje eu sei o quanto tudo é importante durante a vida.
Como cada minuto pode ser o ultimo. Mas, eu só quero que você saiba
que eu sempre vou amar o senhor. E vou olhar por vocês também. Eu
amo muito o senhor. Adeus papai!"
Ele estava dormindo e
eu olhei para ele enquanto saia do quarto. O que eu disse a ele não
fazia diferença nenhuma agora, eu devia ter dito isso enquanto ele
ainda podia me ouvir, enquanto eu ainda estava viva. Mas dizer tudo
isso a ele fazia uma grande diferença pra mim, fazia eu me sentir
mais leve.
Era a vez de me despedir da minha mãe. Isso ia me
doer muito.
Quando desci até a sala, vi minha mãe deitada no
sofá cochilando coberta das cochas até o pescoço com uma
manta.
Acho que se eu pudesse chorar, esse seria um momento. Eu sempre amei
muito a minha mãe e ainda amo demais. Ela era um exemplo de pessoa,
boa, carinhosa, educada até com quem não merecia.
Eu me
aproximei e não conseguia dizer nada. Eu só queria olhar para ela.
Minha mãe sempre foi minha melhor amiga. Sempre me deu bons
conselhos, embora eu não seguisse todos e sempre me ajudou com tudo
que eu precisava.
Não sei quanto tempo fiquei olhando ela
dormir, mas tinha a sensação de que tudo estaria acabado em pouco
tempo. Nesse momento, minha mãe se virou no sofá e eu vi que ela
estava agarrada naquele álbum branco. E percebi que ela não tinha
me esquecido e nada ia fazê-la me esquecer. Ela também me amava
muito e eu sempre seria a filha dela, não importando onde eu
estivesse ou o que eu fosse.
Me ajoelhei e abracei minha mãe,
fichei os olhos e senti como se uma força me fizesse flutuar. Era
como se eu não estivesse mais em lugar nenhum. Eu apenas flutuava.
________________________
Minha mãe abriu os olhos
e olhou em volta.
-Querido? -passou a mão na manta
em que estava coberta e sentiu que estava fria, puxou para o nariz e
sentiu o perfume, fechou os olhos. -Beto, querido! Venha aqui,
rápido!! -ela estava chorando, de alegria e saudades, tudo
misturado.
Meu pai desceu correndo a escada e parou perto do
sofá. Ela olhou para ele e sorriu mostrando a manta, ele pegou e ela
falou:
-Ela estava aqui, não posso
provar nem sei como explicar, mas ela estava aqui.
Meu pai
sentou ao seu lado e abraçou minha mãe que chorava e ria ao mesmo
tempo. Ele olhou sua mão esquerda e lembrou o que a saudade havia
feito a ela no começo. Resolveu que seria melhor não mentir:
-Eu
também senti, querida, eu também senti! Mas devemos deixá-la ir.
Ela precisa descansar.
E
os dois ficaram juntos, cada um com sua forma de sentir.
__________________________
Abaixo
da minha foto, no álbum, estava escrito assim:
"Jasmim com 16
anos.
Linda, a minha princesa.
Agora um anjo
que vai nos iluminar e guardar sempre.
O motivo das minha
orações e de eu crer em Deus.
E agora, mesmo estando perto
dele, jamais saíra de dentro
do meu coração. Amo você,
filha!
nascida: 23/março/1992
falecida:
23/março/2009"