segunda-feira, 3 de maio de 2021

[Resenha] The Five: a História não Contada das Mulheres Assassinadas por Jack, o Estripador de Hallie Rubenhold

É um livro sobre cinco vidas, não sobre cinco assassinatos. Um exemplo de pesquisa histórica científica documental. The Five: a História não Contada das Mulheres Assassinadas por Jack, o Estripador, escrito por Hallie Rubenhold, editado no Brasil pela Wish, resgata a dignidade das cinco vítimas confirmadas do primeiro assassino serial da história, Jack, o Estripador. O objetivo da autora é tirar as cinco pessoas mortas por Jack dos holofotes do sensacionalismo bizarro em torno do mistério e revelar as vidas dessas cinco mulheres que foram mortas porque a sociedade não se importava com elas.

A autora até aponta detalhes esquecidos pelos sensacionalistas no caso Jack, como o fato de que não houve sexo antes das mortes e de que elas provavelmente foram atacadas enquanto dormiam. Se você busca pistas de quem foi Jack? Quais eram suas motivações? Etc., este livro não é para você. As poucas luzes que a autora traz sobre o caso são: os crimes foram sociais, não sexuais; as vítimas foram escolhidas por serem excluídas, mulheres em situação de abandono, sem-teto, não exatamente profissionais do sexo; em algum grau, as cinco eram alcoólatras.

   A pesquisa realizada pela autora é documental, ou seja, documentos e registros antigos reais sobre as cinco mulheres (e das pessoas ao redor delas) são as principais fontes de informação. É claro que a pesquisa também levou em conta jornais e revistas da época e materiais como livros de história e até alguns sites da Internet. Hallie Rubenhold buscou todos os registros oficiais e legais dessas mulheres na época em que elas viveram para reconstituir a vida que elas tiveram até as ruas de Whitechapel. Nenhuma delas havia nascido ali. Todas já tinham sido felizes em algum momento de suas vidas. As biografias das mulheres são apresentadas na sequência dos assassinatos.

Mary Ann “Polly” Nicholls era filha de um ferreiro que trabalhava nas máquinas da indústria gráfica, casou-se e separou-se tornando-se uma sem teto. Não há provas de que ela se prostituía, mas com a separação, a intransigência, a má-fé e a conveniência de seu ex-marido, ela perdeu tudo, até o direito de ver os filhos. Aparentemente, começou a beber quando suspeitou que seu marido a traia, em todo caso, tornou-se alcoólatra. Sem perspectivas, chegou a ser empregada em uma casa de família, mas abandonou o trabalho indo para Whitechapel, onde seria a primeira vítima confirmada de Jack. Ela pode até ter sido morta pelo estripador, mas foi seu ex-marido William Nichols, a sociedade misógina e o preconceito contra mulheres separadas que a levou para o álcool e uma vida de sem teto.


    O álcool também fez parte da vida de Annie Chapman, entretanto a pesquisa sobre a vida dela mostra como álcool era introduzido na vida das pessoas desde a infância. Ele estava presente até em medicamentos destinados a aliviar as dores da primeira dentição em bebês. Annie Chapman nasceu filha de um militar e de uma empregada. Ela mesma foi uma empregada doméstica. Depois do serviço militar, seu pai fora designado como empregado de confiança de um lorde. Com a morte de seu pai, sua mãe monta uma modesta pensão investindo bem o dinheiro recebido como ajuda pelo empregador do falecido marido.


    Um dos hóspedes dessa pensão foi o marido de Annie, que se tornaria o primeiro cocheiro de um grande e rico investidor. Ao casar-se, Annie Chapman, viu-se com o luxo de não precisar trabalhar, pois que seu marido ganhava muito bem para administrar o grande estábulo de seu patrão. Como todos os ingleses entravam em contato com o álcool desde a infância, o alcoolismo só era visto como um problema se afetasse a vida laborativa e a dependência passou a ser vista como uma fraqueza do indivíduo.


    Mas o alcoolismo de Annie Chapman também traria sequelas aos seus filhos. Ela se sentia culpada por isso e bebia cada vez mais. Chegou a ser internada e ter alta, mas uma recaída fez com que seu marido se visse obrigado a separar-se dela ou perderia o emprego. Ela chegou a viver na casa da mãe e a ter a ajuda das irmãs, mas o vício foi mais forte e a vergonha a levou paulatinamente para Whitechapel. Vivia de pequenos trabalhos de crochê e da venda de produtos baratos como fósforos, chegou a ter outros relacionamentos, seu ex-marido pagou sua pensão até ficar doente e falecer. Como sua antecessora, morreu com o estigma de profissional do sexo dado pela imprensa sensacionalista.


    Elizabeth Stride nasceu filha de fazendeiros na Suíça e a sua história é bem mais complicada que as anteriores. Um ponto em comum se faz presente, assim como as anteriores, ela foi apresentada ao álcool desde cedo, mas com o agravante de uma produção caseira inclusive. Pelo preconceito da época, seus pais nem cogitaram que ela poderia ficar na fazenda e, um dia, administrar o negócio da família. Ela foi mandada na adolescência para uma cidade para servir de empregada doméstica.


    Não importa como ela engravidou no serviço de empregada, se a relação foi consensual ou não, se foi o patrão ou alguém ligado direta ou indiretamente a família do patrão, a culpa sempre recaia sobre a mulher pela lei da Suíça. Toda mulher que engravidasse fora de um casamento era fichada pela polícia como mulher pública, prostituta. Até a sua afortunada irmã mais velha virou as costas para ela e ela, por culpa e vergonha, nem pensou na possibilidade de voltar a casa paterna.


    Uma vez marcada como prostituta e tendo passado por um tratamento de sífilis e um parto prematuro de um natimorto, só restou a Elizabeth a prostituição de fato. Seu “crime” foi ficar grávida em uma sociedade em que homens não eram responsabilizados pela gravidez de uma mulher solteira. Provavelmente, o pai de seu filho morto fora seu patrão ou alguém ligado a ele, certo é que ela pegou sífilis do pai da criança com base nos indícios clínicos; se o sexo foi consensual ou forçado, isso não importava para as leis suíças da época, a culpa era da mulher solteira.


    Ainda assim, ela conseguiu vaga numa instituição que resgatava mulheres públicas e, a partir desta, um emprego como empregada doméstica de um músico e sua esposa. Neste ambiente, em que músicos estavam em constantes viagens para apresentações e conheciam pessoas de todos os lugares do mundo, Elizabeth não pensou duas vezes em mudar-se de país quando amigos londrinos de seus patrões ofereceram um novo emprego. Sua ficha na polícia estava limpa, mas toda a sociedade local lembrava dela, de seu passado e de seu estigma.

    De fato, sua vida na Inglaterra começou bem, ela não teve muitos percalços, apesar de passar por mais de um empregador. Quando trabalhava numa pensão de classe média, conheceu John Stride, com quem se casou. Ele, aparentemente, não sabia o passado da esposa. Juntos, o casal investiu em uma cafeteria, mas ela estava localizada em meio a vários bares e a maioria da clientela não queria largar o álcool. Eles chegaram a mudar o endereço da cafeteria, mas a falência e as dívidas chegaram.


    Houve a separação, ela passou a viver de pequenos golpes complementando a pensão e tudo piorou mais ainda quando John Stride morreu. Ela se entregou de vez ao álcool e a prostituição chegando a ter outro parceiro e adotando o nome dele informalmente. Além de prostituta e golpista, ela foi filha de fazendeiros, empregada, injustiçada, imigrante, empregada novamente, esposa e dona de cafeteria. Injusto que a história apenas a registre como uma das prostitutas vítimas de Jack, não é mesmo? Certo é que, com o resgate de sua vida, Jack não passou de um figurante numa história que daria um filme. Com efeito, apesar dos jornais sensacionalistas, nos registros oficiais da polícia consta apenas que ela era viúva de um carpinteiro.


    Catherine Eddowes foi filha de um metalúrgico e de uma empregada doméstica que se viu impedida de trabalhar para cuidar do primeiro filho com deficiência e dos muitos que viriam. Por conta de problemas com o sindicato e os patrões, seu pai foi obrigado a arrumar trabalho em Londres, e lá foi ela ainda muito criança. Ela era chamada Kate, era considerada a mais inteligente dos irmãos e, por conta disso, chegou a ser alfabetizada numa escola destinada a filhos de operários mantida por caridade. Já adolescente, sua mãe e seu pai morrem e ela volta para sua cidade natal. Seus tios a colocam como operária de uma fábrica metalúrgica e ela ainda tinha que cuidar dos primos mais novos. Todas essas perdas e seu temperamento “alegre” (nas palavras do tio) a levam para o álcool. Ela também foi pega furtando objetos na fábrica onde trabalhava, mas tendo em vista o bom relacionamento da família com o dono da fábrica, não foi processada.


    Demitida, foi para uma cidade vizinha, ficou hospedada com outro tio e trabalhou numa fábrica de bandejas. Até que conheceu um vendedor ambulante e contador de histórias. Catherine teve uma filha com ele, partiu em viagem com ele, compôs baladas e se apresentou com ele por toda a Inglaterra, mas nunca se casaram formalmente e nunca mudou seu nome, Eddowes. Muitas outras coisas que ela fez e que foram escândalos na época causariam risos hoje. Duvida? Ela fez uma tatuagem com as iniciais do companheiro e pai de seus filhos.


    Mas chegou o momento em que o casal resolveu tentar a sorte na carreira musical em Londres, o que para Catherine Eddowes significava a volta ao verdadeiro lar. Mas o sucesso não veio e, anos mais tarde, seu marido partiu para a vida de mascate deixando Catherine sozinha e com mais filhos para cuidar em Londres. Ela e suas crianças passaram a frequentar as Casas de Trabalho e ela começou a beber.


    Seu companheiro voltou a Londres decidido a parar de beber, ela continuou a beber, houve conflitos e brigas com violência física. Eles se separaram, sua filha mais velha casou-se e se tornou mãe, ela arrumou outro parceiro que também bebia e se distanciou cada vez mais da família até se tornar uma sem teto e ser morta. Em resumo, Catherine Eddowes foi uma estudante promissora, operária, ladra, operária de novo, esposa, vendedora ambulante, cantora e compositora de baladas antes de perder sua vida para a bebida e tornar-se uma sem teto. Ela nunca se prostituiu, mas a história e o preconceito de uma época a marcariam com o estigma comum a todas as mulheres pobres e sem teto.


    Mary Jane Kelly foi prostituta de fato, mas seu passado real é um mistério, ela escondia mesmo. Aparentemente, isso era uma forma de prudência e se mostrou bem útil. A biografia que ela contava aos seus conhecidos não pôde ser confirmada e continha contradições ou mudanças a cada conhecido. É tanta lacuna de informações sobre sua vida e tanta insuficiência de registros, que Hallie Rubenhold só escreveu dois capítulos sobre ela contra os quatro de cada uma das anteriores. Provavelmente, ela nunca dera seu nome verdadeiro a ninguém. Uns acreditam que ela foi bem-educada, outros defendem que era uma analfabeta com alto talento para atuação; mas suas maneiras eram refinadas. Não se dizia inglesa, mas falava inglês tão bem que ninguém mencionava sotaques. O que se sabe é que ela foi uma profissional do sexo de luxo, atuava na parte fina de Londres até ser vítima de um golpe. Foi enganada e vendida como escrava sexual em Paris, França, mas, esperta, conseguiu fugir e voltar para Londres. Sem confiar em sua antiga cafetina e seus contatos, passou a atuar na região do cais do porto londrino com uma nova identidade. E mudar de identidade era relativamente fácil no século XIX.


    Chegou a ter um companheiro e com ele foi morar em Whitechapel, bebia, mas o álcool, desta vez, não pareceu atrapalhar tanto a sua vida. Chegou a abrigar mulheres sem teto, prostitutas ou não, em seu cômodo alugado para protegê-las do já famoso Jack, o estripador. Esta ele deve ter contratado, ido ao seu cômodo onde a dopou com álcool ou drogas. Ele não fez sexo com ela. Ela é a única que tem a ocupação prostituta nos registros oficiais da polícia.


    As vítimas confirmadas de Jack, sobretudo as duas últimas, tiveram funerais memoráveis e eram queridas pelas ruas de Whitechapel. Só uma era conhecida como prostituta, mas o estigma da venda de sexo parecia estar mais nos jornais e nas falas dos falsos moralistas do que na reação popular em relação aos profissionais do sexo. Três delas nunca se prostituíram, mas foram tratadas como prostitutas por puro preconceito de classe social. Estas cinco mulheres foram cinco seres humanos, e elas não merecem serem lembradas apenas como as cinco prostitutas mortas por Jack, o estripador. Não há provas de que 3 delas se prostituíram. As cinco foram mais que cinco vítimas de um assassino, foram cinco pessoas, cinco seres humanos, que viveram, tiveram pais, filhos e dignidade como tantas outras mulheres marginalizadas que não foram vítimas do primeiro assassino em série da história, mas que sentiram medo dele.


    Em todas essas histórias, há pontos onde elas foram felizes e que, se parassem ali, ninguém teria como prever a precariedade que antecedeu os assassinatos. Na época, a polícia estava atrás de uma gangue de cobradores de agiotas e um deles, John Pizer, conhecido como “Avental de Couro”, era o encarregado de cobrar ou matar prostitutas que deviam dinheiro. Sempre que a polícia encontrava uma mulher morta, sem indícios de uma ocupação formal, marcava “prostituta” no campo “ocupação” das fichas das vítimas. Era com essa hipótese que a polícia trabalhava no primeiro assassinato. Para os jornais sensacionalistas, um assassino de prostitutas renderia mais vendas do que um assassino de mulheres sem teto, sexo e violência vendem mais que só violência. Assim, os repórteres deturparam os depoimentos das testemunhas e dos conhecidos das vítimas. Mesmo ficando claro que o assassino era mais do que um simples criminoso profissional, ainda assim os jornais vendiam mais com assassinatos ligados a sexo.


    Isso que vou falar agora antes de concluir esta resenha não consta no livro (e nem é o foco dele), mas sabemos que só um cirurgião de talento poderia fazer o que Jack fez. Tudo aponta para uma bizarra coleta de material de estudo (provavelmente sobre alcoolismo) e para o fato de que o criminoso deve ter pago muito bem por sua impunidade. Outro detalhe que o livro resgata é o fato de que elas eram conhecidas e queridas pela comunidade. Se houvesse qualquer chance de John Pizer ser Jack, talvez ele fosse morto pelos próprios cúmplices. Mas não é disso que The Five trata, o livro é sobre as mulheres e o resgate de suas vozes, identidades e dignidades.


    Concluindo: apesar do estilo elegante e sintético de Hallie Rubenhold, The Five não é um livro para ser lido rapidamente, numa sentada e de forma descompromissada. Ele é uma pesquisa histórica baseada em documentos que retrata injustiças sociais ligadas às mulheres. As cinco mulheres mortas por Jack não eram as cinco únicas mulheres em situação de abandono na Londres de 1888, mas são cinco retratos desta situação de abandono. O livro emociona ao nos mostrar cinco histórias de vida que foram mais do que as cinco vítimas de um assassino em série. Triste é constatar como a Londres de 1888 se parece tanto com as grandes cidades brasileiras de 2021, sobretudo o Rio de Janeiro.


    Boas leituras!


    Rodrigo Rosas Campos

Um comentário:

  1. Já li em algumas oportunidades sobre os crimes do Estripador e suas vitimas. Todavia nunca li algo que retratasse ou abordasse esse lado humano das vitimas do Jack. De fato uma vertente social que transpassa os padrões religiosos e moralistas da sociedade Vitoriana da época. Trazendo luz as motivações dos crimes horrendos do período que falam muito mais do carater transgressor do criminoso em si invés da vida aparentemente marginalizada de suas vitimas. Retirando o teor acusatório que a sociedade da época colocou sobre as mesmas fazendo-as parecerem as motivadoras desses crimes praticados por uma mente violenta e cruel.

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