sexta-feira, 1 de março de 2024

[Matéria] Multiverso dos Super-heróis Br

Rodrigo Rosas Campos

Introdução

    Não entrarei no mérito acadêmico de que super-heróis são manifestações típicas dos EUA assim como o rock e o jazz mesmo quando feitos por não estadunidenses fora dos EUA. Essa é a mesma discussão sobre o rock brasileiro, o bang-bang italiano, o jazz fora dos EUA e o samba fora do Brasil. Essa discussão é linda quando envolve gente que consegue manter uma discussão civilizada, onde os participantes concordam em discordar, se for o caso, e que conhecem o assunto de verdade, por livros, e não por posts de redes sociais. Em todo o caso, além do tema dividir opiniões, não é o foco aqui.

    E nem quero comentários a respeito, quem quiser se polarizar que faça isso longe. Com quem eu sei que não discute tudo na base da torcida Fla x Flu, GreNal etc. eu falo isoladamente, de preferência, presencialmente. O que importa aqui é que brasileiros escreveram, desenharam e publicaram super-heróis em território nacional. Sigamos a partir daqui:

Encontros e Universos Paralelos


    Os super-heróis brasileiros são de seus respectivos autores (ou herdeiros) e são pouquíssimos os universos compartilhados entre eles. Já houve vários encontros entre eles (os chamados crossovers), mas cada uma destas edições foi um projeto distinto e pontual. Esses crossovers ocorreram antes e durante a implementação das plataformas de financiamento coletivo no Brasil. Confira no Guia dos Quadrinhos.

    Para garantir a independência e os direitos autorais, não se pratica aqui o abuso que se pratica nos EUA em que pessoas jurídicas podem ser detentoras de obras intelectuais e artísticas, há um multiverso para os heróis brasileiros exatamente para evitar conflitos entre autores com relação a esses encontros.

    Ou seja, a menos que todos os personagens sejam do escritor do encontro que você lê, cada autor dos personagens envolvidos decide se o encontro terá ou não repercussão e até que ponto para seu respectivo personagem. E sejamos sinceros, apesar do grande número desses encontros (que parecem poucos por conta de tiragens pequenas), a maioria dos autores brasileiros tem o hábito de criar seus próprios personagens em todos os tipos de obras.

    Outro detalhe é que da perspectiva de um autor brasileiro típico é mais fácil criar sua própria vampira do que querer usar a Mirza. Ou mesmo é mais fácil criar sua própria super-heroína do querer usar a Velta. Com efeito, as obras mais atuais de super-heróis independentes, no Brasil e até nos EUA, trazem universos completos de um só autor (escritor) ou de uma só equipe criativa (escritor, desenhista etc.). Afinal, usar a Mirza ou a Velta não significa apenas ter que pagar direitos aos autores, isso é mais do que justo, significa que o(a) escritor(a) que usar a Mirza ou a Velta não poderá fazer o que quiser com nenhuma das duas.

    Apesar desse dificuldade, há um esforço real em fazer um universo compartilhado nos moldes da DC ou da Marvel com super-heróis brasileiros de vários autores, o que, a longo prazo se mostra uma péssima ideia. O destino de todo universo compartilhado é ficar enfadonho com vários personagens e histórias redundantes; quem acompanha (e abandona) DC e Marvel sabe muito bem disso. Mas se for só para lucrar mais vendendo produtos licenciados, as figurinhas (imagens etc.) importam mais que a qualidade das histórias (do texto), aí vale tudo.

    Mas voltando ao ponto: existem encontros entre super-heróis brasileiros de autores diferentes. Fora que você ainda pode partir do pressuposto que personagens de um mesmo autor vivem no mesmo universo até que o mesmo diga o contrário. E sim, existem universos compartilhados no Brasil, eles nunca alcançaram o tamanho e a divulgação de uma DC ou Marvel, mas esses universos existem. É claro que não conseguirei falar de todos aqui, até porquê são vários autores produzindo juntos ou separados até hoje.

    Mas vamos definir uma coisa aqui: há quem defenda que quando falamos em universo compartilhado, estamos falando de universos em que autores distintos usam personagens uns dos outros e em vários títulos, várias revistas ao mesmo tempo. Isso está certo? Está. O problema é que a maioria dos autores brasileiros cria sozinha (ou com a ajuda de desenhistas no caso de escritores de quadrinhos que não desenham) seu próprio elenco de personagens. Enfim, essa discussão é longa, mas aqui valerá tanto universos com personagens de um único autor(a ou equipe criativa), quanto de universos com personagens de vários autores (ou de várias equipes criativas) diferentes. E por onde começamos? Pelas datas, a melhor pedida é pela revista do Raio Negro brasileiro.

Raio Negro e Seu Universo Compartilhado


    O Raio Negro brasileiro foi criado por Gedeone Malagola em 1966, ele era para ser a história secundária do Homem Lua, mas o editor preferiu colocar o Raio Negro na capa e no título. Além dos dois personagens anteriores, também estava na revista o Hydroman. Se os outros personagens de Gedeone Malagola estão no mesmo universo, não tenho como responder agora, mas esse trio da revista do Raio Negro se encontrou ao longo da duração da revista.

    Eu sei, o Raio Negro é uma cópia do Lanterna Verde que parece o Ciclope, o Hydroman é uma cópia do Namor e o Homem Lua é meio bizarro com aquele aquário na cabeça lembrando o Mistério, inimigo do Homem-Aranha. Ainda assim esses três personagens brasileiros possuem fãs que não deixam suas petecas caírem. Além do mais, até prova em contrário, qualquer personagem que Gedeone Malagola tenha criado com a mesma temática de super-herói depois dessa revista pode estar no mesmo universo do Raio Negro.

Editora Graúna


    1967, a Marvel chegava ao Brasil pela EBAL e aparecia na TV em seus famosos “desenhos desanimados”. Nesse clima, a pequena editora Graúna é fundada para criar um universo de heróis nos moldes da Marvel no Brasil. Sim, uma editora surgiu no Brasil no final da década de 1960 para emular a Marvel. Surgiam Golden Guitar, Homem Fera e Mystiko, cada um em sua revista, mas no mesmo universo compartilhado onde os autores se misturavam.

    Mystiko é uma cópia descarada do Senhor Destino, o Doctor Fate, da DC, mas até aí, copiaram mas tiveram o cuidado de não desenhar igual e de ambientar o texto no Brasil, diferença pouca, mas que faz uma diferença real: a melhor definição prática do “copia, mas não faz igual.”.

    O Homem Fera, apesar do visual e do nome, não se parecia nem com o Fera dos X-Men, nem com o Pantera Negra; era um domador de circo que usava sua pantera-negra como arma na luta contra o crime. Problemático hoje? Sim. Mas animais em circo só foram proibidos no Brasil nos anos 1990. Ou seja, se desde 1967 a Sociedade Protetora dos Animais olharia o Homem Fera com desdém, hoje ele seria cancelado até pelo grande público na primeira edição.

    O melhor destes três foi o mais inusitado. Golden Guitar chegou surfando no sucesso da Jovem Guarda, tinha um visual parecido com o do Roberto Carlos e uma guitarra elétrica dourada cheia de truques que usava para combater os malfeitores. Só num desenho animado de 1981 que os americanos fariam um super-herói roqueiro que usava uma guitarra elétrica como uma super arma, ou seja, em 1967, Golden Guitar foi um precursor em seu conceito.

    Mas a editora Graúna não teve o mesmo folego financeiro para concorrer com as demais que tinham as licenças da Marvel, DC, King Features etc. e esse universo foi cancelado por falta de vendas mesmo. Ainda que o Brasil tivesse um público leitor numeroso como os de EUA, Europa e Japão, acho que, desses três personagens, Golden Guitar seria o único que conseguiria chegar bem até os dias de hoje ou que um editor teria coragem de tentar revitalizar sem medo.

    Afinal, Mystiko não passava de uma cópia, ainda que bem-feita, e o Homem Fera era um domador de circo, não importam as mentiras que digam, animais em circo sofriam maus-tratos, isso é fato. A proibição dessa prática foi justa. E para os editores que possam se interessar pelo primeiro super roqueiro da história, Golden Guitar foi criado por Rivaldo A. Macedo, Rubens Cordeiro, A. Torres e Apa (Aparecido Benedito da Silva).

O Universo e o Multiverso da Velta


    Velta é a mais famosa super-heroína brasileira hoje. Criada por Emir Ribeiro em 1973 em um fanzine, ela não fez muito barulho na época, mas é anterior a Mulher Hulk de Stan Lee na Marvel e não depende de um protagonista masculino anterior, sendo portanto, uma verdadeira precursora. Abduzida por um alienígena, ganhou o poder de se transformar numa gigante superforte, com grande resistência e poder de regeneração além de soltar raios elétricos pelos dedos. Velta se torna uma detetive, não é má, mas só trabalha por dinheiro.

    Emir Ribeiro também criou a Garota de Borracha, o Homem de Preto, Nova e outros personagens e decidiu que todos viviam no mesmo universo através de encontros entre eles. Entretanto, Velta é a personagem que mais coleciona crossovers com personagens de outros autores, as vezes com o aviso de que se trata de uma “Realidade Alternativa” na capa. Se contarmos todos os encontros da personagem como válidos, canônicos, no termo da modinha, ela faz parte de um universo muito maior que a soma dos personagens de seu autor e também de um multiverso maior ainda.

    Os exemplos são fáceis de achar até no Google imagens com uma pesquisa simples pelo nome da Velta. Além de marcar presença em histórias de outros personagens de seu próprio autor, Velta já se encontrou com o Vigilante Rodoviário, Judoka, Mirza, Naiara, Lagarto Negro e faz parte do Projeto Alfa que reúne vários super-heróis brasileiros em um único universo.

    Enfim, lendo só as histórias de Velta, missão difícil tendo em vista que as tiragens de cada edição não são tão grandes quanto a heroína, é possível definir em quantos universos ela existe e quem está no universo original dela além dela mesma e dos demais personagens de seu próprio autor. Despretensiosamente, Velta foi a primeira personagem a ligar os super-heróis brasileiros de uma forma mais natural e orgânica.


O Catalogador de Lancelott Martins e o Multiverso Br.


    O Catalogador foi criado por Lancelott Martins e publicado pela primeira vez em 2012. Prudente, Lancelott Martins fez de seu personagem um viajante do multiverso que cataloga heróis de várias realidades e os une para resolver problemas pontuais. Assim, personagens de um autor podem se encontrar com personagens de outro autor sem obrigar ninguém a seguir cronologias posteriores ou anteriores.

    Mas o multiverso abre possibilidades, não as fecha. Um mesmo personagem pode existir em vários universos e em universos unificados diferentes que podem surgir daí. Creio que Lancelott Martins é prudente em não tentar unificar todos os personagens de autores distintos sabendo que autores brasileiros são bem protecionistas com suas obras, autorais mesmo, e que seria muito difícil um acordo a longo prazo que agradasse a todos por muito tempo numa linha única. Há décadas a Marvel e a DC são duas zonas, imagine se elas não tirassem os direitos dos respectivos autores e tivessem que negociar com cada um a cada edição.

    Fora que é extremamente irritante não ter em mãos uma edição com uma história que se basta. Exemplo: se a história tem início, meio e fim e é minimamente divertida, pouco me importa se Mirza, Velta e Catalogador estão no mesmo universo desde sempre ou se eles se juntaram para resolver uma ameaça comum às suas três realidades, o importante é a história ser fechada e divertida.

    Bom, o Catalogador foi criado com a intenção de ser o elo entre todos os personagens dos quadrinhos de super-heróis brasileiros, está virtualmente em todos os universos e num grande multiverso unificado.

Universo (e o Multiverso) do Homem-Grilo


    O Homem-Grilo foi criado por Cadu Simões e Ricardo Marcelino para defender Osasco City, uma versão fictícia de Osasco no Estado de São Paulo. Criado sob uma licença aberta, creative commons, vários autores e desenhistas já fizeram histórias com ele, o que na visão de alguns, e eu me incluo nessa, soa como um multiverso. Afinal, cada autor fará uma variante diferente do personagem.

    Mas não é só isso, Homem Grilo não ficou sozinho por muito tempo em Osasco City e a própria cidade ganhou versões fictícias dos arredores da Osasco real com outros heróis. Outros desenhistas entraram no projeto de Cadu Simões e outros autores como o Will agregaram os personagens deles num universo unificado. Assim, as histórias do Sideralman estão no mesmo universo do Homem Grilo e sua turma. Mas não é só isso, o Bucha já se encontrou com Sideralman e existe no universo do Homem-Grilo por tabela.

    Enfim, o universo (e o multiverso) do Homem-Grilo é composto de personagens que se juntaram a medida que seus autores se conheceram e resolveram juntá-los, um universo criado por autores independentes de forma orgânica e natural.

O Universo dos Personagens de Eugênio Colonnese


    Em 2001, Watson Portela reuniu os personagens de Eugênio Colonnese numa aventura só na revista A Última Missão. Participaram da trama o Gato, Angélica, Mirza, Mylar, Pele de Cobra e Superargo. Como Colonnese participou do evento de lançamento da revista junto com Watson Portela, podemos concluir que os personagens de Colonnese nos quadrinhos sempre partilharam a mesma realidade com as bençãos do autor.

    Note que ao longo do tempo esses personagens foram de editoras diferentes, mas, no mundo dos quadrinhos independentes, onde as editoras não roubam direitos autorais, mais valem os autores que fazem os personagens do que as marcas atreladas aos personagens. Isso é maravilhoso!

Comando Justiça


    Em um fanzine em 1995, Darlei Nunez criou o Comando Justiça com novas versões, sucessores, dos heróis brasileiros mais conhecidos. Entre eles, um novo Capitão 7, afrodescendente, uma Mulher Lua, um novo Hydroman entre outros. É claro que o autor tem personagens próprios além dos descendentes dos antigos, logo o Comando Justiça divide a cena com os Protetores.

Universo Alfa: A Primeira Ordem


    Iniciativa recente de Elyan Lopes, o criador do Capitão R.E.D. Está sempre em financiamento coletivo desde 2015. Reúne os mais atuais autores de super-heróis brasileiros e é a mais ambiciosa tentativa de colocar todos os super-heróis do Brasil no mesmo contexto. Já possuem edições lançadas, se eles conseguirão manter isso, não sei, mas a ideia é colocar todos mesmo, ou ao menos, assim parece.

Os Sete


    Com a presença do Catalogador, Eberton Ferreira reúne seus próprios heróis aos de outros autores para fomentar a criação e a ampliação dos super-heróis no Brasil. Está em financiamento coletivo desde 2021, mas começou bem antes disso.

Universos de Autores ou Equipes Feitos Para Histórias ou Séries Fechadas


    É claro que há novos super-heróis brasileiros autorais e seus respectivos universos compartilhados surgindo até hoje, o tempo todo. Destaco As Empoderadas de Germana Viana de 2015; Esquadrão Vitória de Gico Galli em 2017 e 2020; e Dias de Horror de Danilo Beyruth e demais desenhistas do Chiaroscuro Studios em 2017. Com efeito, estas três histórias são só algumas das mais atuais e as melhores ao meu ver. Em todas elas temos universos estabelecidos em que super-heróis surgem e vivem suas aventuras. Mas em todas elas, cada autor ou equipe tem seu próprio elenco de super-heróis.

    As Empoderadas é a série com personagens de Germana Viana; Esquadrão Vitória é uma série que traz os personagens de Gico Galli; e o universo de Dias de Horror de Danilo Beyruth e Chiaroscuro Studios traz os personagens desta equipe criativa para esta história específica. E nem poderia esquecer Os Fabulosos de Roger Cruz que é uma sátira dos mutantes da Marvel dos anos 1990, uma sátira que ficou muito melhor que o original, diga-se de passagem. Também é preciso lembrar o U.F.O. Team, criado por Marcelo Cassaro e Joe Prado, que é um grupo de super-heróis compartilhando um mesmo universo maior.

    Como já disse, não dá para falar de todos, fiz o melhor que pude, boas leituras e até breve!


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