segunda-feira, 29 de março de 2021

[Matéria] O Chamado de Cthulhu e Outros Contos de H. P. Lovecraft – Um Título, Duas Formas de Publicar


Antes de mais nada, este texto é destinado a mostrar duas opções de edições de livros para quem quer experimentar o autor H. P. Lovecraft, mas não sabe por onde começar e já ouviu falar em um tal de Cthulhu. Se você já é fã de Lovecraft e seu horror cósmico, estas linhas não acrescentarão nada ao que você já sabe. E acho que nem preciso dizer que a obra de Lovecraft não é aconselhada para menores de 18 anos. Ops, já disse.

Outra coisa que faço aqui, é compartilhar minha humilde reflexão sobre duas formas de publicar um mesmo conteúdo. Como vocês verão, não há uma forma mais certa e outra mais errada, uma melhor e outra pior. Cada uma delas depende do objetivo da editora e de como o público quer chegar naquela obra.

Um mesmo título e duas edições diferentes de duas editoras diferentes resultando em dois livros diferentes. É sempre interessante ver como duas editoras trabalharam o mesmo material, principalmente levando em conta que as duas edições tiveram o mesmo título “O Chamado de Cthulhu e Outros Contos”, mas com alguns contos diferentes e alguns contos repetidos de uma edição/editora para outra. No caso de H. P. Lovecraft, isso se dá porque o autor publicou sua obra, originalmente, em revistas literárias pulps de terror/horror no formato de contos. Como sua obra caiu em domínio público, cada editor pode pegar esse material e editá-lo como bem entender.

Nesta matéria não será feita uma comparação de traduções, eu não reli o que eu já tinha lido e isso não traria nada para a discussão que pretendo fazer nessa matéria. Como já disse e repito, cada editor tem liberdade para publicar e republicar o material de Lovecraft como bem entender, o que quero comparar aqui são as duas abordagens de publicação tendo em vista estes volumes específicos da Hedra e da L&PM. Também não será feita uma resenha conto a conto, isso já tem aos montes na Internet, em livros e revistas (especializadas em literatura ou não). Pode procurar.

O que pode ser dito inicialmente sobre essas duas editoras em relação a Lovecraft? A L&PM é uma editora mais antiga e consolidada. Foi, durante muitos anos, a editora de Luís Fernando Veríssimo no tempo em que ele era um dos maiores vendedores de livros do país, se não o maior. Quando, nos anos 1990, a L&PM desenvolveu sua linha de livros de bolso, a coleção L&PM Pocket, já colocou O Caso de Charles Dexter Ward de Lovecraft como o volume 25 da coleção. Hoje, publica 6 livros de bolso com contos de Lovecraft.

Inicialmente, a coleção L&PM Pocket trouxe reedições econômicas de títulos que já estavam no catálogo da L&PM. Hoje, os livros de bolso são o carro-chefe da L&PM. Em suma, por parte da L&PM, nunca houve uma preocupação de focar em Lovecraft, ele era (e ainda é) apenas um autor que podia ser colocado para fazer volume numa linha maior.

A Hedra é uma editora mais recente e parece ter entrado no mercado para preencher o segmento de terror e livros econômicos. Fez de Lovecraft seu carro-chefe (ou, ao menos, um de seus carros-chefes). Consultando em 05/11/2020 o site da editora, parece que Lovecraft não é mais a prioridade deles agora, mas, os livros de bolso da Hedra mais conhecidos hoje são coletâneas de Lovecraft. São baratos e fáceis de achar em sebos, feiras do livro, livrarias reais e virtuais, novos ou usados e em bibliotecas públicas. Esta é a maior vantagem das edições da Hedra hoje.

Ambas as editoras publicaram os livros de bolso de forma que eles fossem o mais barato e atraentes possíveis ao público brasileiro. Apesar do formato de bolso ser popular no país, o público brasileiro é avesso a páginas de papel-jornal (polpa). Quem já viu ou comprou livros importados sabe que os autores dos mais desconhecidos aos mais célebres, dos mais atuais aos caídos em domínio público, vendem livros em formato de bolso e com papel de polpa no miolo. Enfim, triste verdade, as editoras brasileiras que tentaram lançar linhas de livros de bolso com miolo de polpa de papel não foram muito longe pois os poucos leitores que existem no Brasil são superficiais ao ponto de recusarem os formatos mais baratos do livro impresso. O formato comum dos livros nas duas editoras demonstra que ambas querem popularizar a obra o máximo possível dentro da realidade do mercado brasileiro e seus leitores. Neste aspecto, as edições da Hedra são mais baratas que as da L&PM em função da qualidade gráfica superior desta última.

Antes de continuar, vale lembrar que várias editoras publicaram e publicam volumes com as obras completas de Lovecraft e que eles estão nas livrarias brasileiras tanto em português como em inglês (edições importadas). Todavia, são obviamente edições bem caras e comprar uma obra completa sem antes experimentar um autor(a), qualquer que seja ele (ou ela) é um risco. Você não sabe se vai gostar de ler Lovecraft, nem se gostará ao ponto de querer ler tudo o que ele escreveu. Fora que você tem o direito de não gostar de qualquer escritor(a) por mais consagrado(a) que ele(a) seja. Isso vale para Lovecraft e para qualquer outro(a) autor(a).

Como a L&PM e a Hedra lidam com as polêmicas em torno de Lovecraft? A obra de Lovecraft é cercada de algumas polêmicas: ele era racista e não gostava de sexo são as mais notórias. Isso fica evidente em sua obra e nem a L&PM, nem a Hedra passam pano para isso, mas lidam com esse fato de diferentes formas.

A Hedra se preocupou em acrescentar textos introdutórios explicando e contextualizando a obra de Lovecraft. Em sua edição de O Chamado de Cthulhu e Outros Contos de 2012, este texto introdutório é assinado pelo próprio tradutor, Guilherme da Silva Braga.

Nesse aspecto, a L&PM optou por aquela biografia protocolar do autor, Lovecraft, de 2 páginas e sem assinatura do autor do texto, que não entra em pormenores e é sem juízos de valores. Bem chapa branca. A tradução de Alexandre Boide não tem censura e demonstra de forma escancarada o racismo de Lovecraft, do autor, sobretudo em “Herbert West – Reanimador” e “Os Ratos Nas Paredes”, presentes neste volume nas páginas 42 até 114. O racismo de Lovecraft também se mostra presente em Nyarlathotep. Sem dúvida esta edição da L&PM está recheada das “facadas no coração” mencionadas no livro Território Lovecraft de Matt Ruff.


Como a L&PM já era uma editora com história e público próprios há décadas, talvez houvesse (e haja) o consenso de que Lovecraft já era (seja) conhecido em todos os seus aspectos e ela contasse (conte) com o bom senso de seus leitores na hora de ler o texto. Em todo caso, a série L&PM Pocket simplesmente publica livros de bolso mostrando os conteúdos da forma mais crua possível, sem nenhuma preocupação didática em relação a obra, mas como um produto de entretenimento o mais acessível possível a quem procurar.

Vamos lembrar que a L&PM iniciou sua linha de bolso como versões econômicas do que ela já publicava nos anos 1990, ou seja, O Chamado de Cthulho e Outros Contos da L&PM se destina aos leitores da L&PM ou aos leitores de Lovecraft na L&PM, não a novos leitores de fato e nem a leitores de Lovecraft mais aficionados.

Bom, vamos agora dar uma visão geral das duas edições com suas respectivas referências bibliográficas. A L&PM publicava Lovecraft a mais tempo, mas a Hedra fez um livro com o título O Chamado de Cthulhu e Outros Contos em 2012 e a L&PM só fez em 2018, com efeito, é o volume 1.241 da coleção L&PM Pocket. Logo, vamos começar pela edição da Hedra:

LOVECRAFT, Howard Phillips. O Chamado de Cthulhu e Outros Contos. São Paulo: Hedra, 2012.

A tradução da Hedra foi de Guilherme da Silva Braga, com introdução do tradutor e dois textos de Lovecraft sobre literatura fantástica: Carta a R. Michael; e Notas Sobre a Escritura de Contos Fantásticos. Estes textos do Lovecraft sobre histórias fantásticas e a introdução do tradutor mostram o investimento que a Hedra fez na obra do Lovecraft, um autor de domínio público, com um público nichado, mas fiel, que poderia trazer leitores (e dinheiro certo) para a editora, até então, nova.

Entretanto cabe notar aqui, que a introdução escrita pelo tradutor se preocupou em alertar novos leitores sobre os eventuais elementos espinhosos do texto de Lovecraft em função do racismo do autor. Na possibilidade de trazer novos leitores, que estes novos leitores não se sintam enganados.

Os contos da edição da Hedra são: Dagon; Ar Frio; O Que a Lua Traz Consigo; A Música de Erich Zann; O Modelo de Pickman; O Assombro das Trevas; e O Chamado de Cthulhu.

São 7 histórias e um total de 156 páginas. É claro que outros autores de domínio público fizeram parte do catálogo inicial da Hedra, mas os livros que mais vi (e vejo) da editora são os de Lovecraft e de terror em geral.

Agora vamos olhar O Chamado de Cthulhu e Outros Contos da L&PM de 2018:

LOVECRAFT, Howard Phillips. O Chamado de Cthulhu e Outros Contos. Porto Alegre: L&PM, 2018.

A tradução da L&PM foi de Alexandre Boide. Como já dito, há uma biografia protocolar (chapa branca, de 2 páginas) de Lovecraft sem identificação do autor deste texto biográfico. Não há textos do autor sobre os bastidores de sua obra e nem como ele entende o horror/terror e a ficção científica, essa não era a proposta da L&PM, Lovecraft nunca foi o carro-chefe da editora.

Os contos da edição da L&PM são: Nyarlathotep; A Cidade Sem Nome; A Música de Erich Zann; Herbert West – Reanimador; Os Ratos nas Paredes; Ar Frio; O Chamado de Cthulho; O Modelo de Pickman; A Cor Vinda do Espaço; A História do Necronomicon; e O Horror de Dunwich.

São 11 histórias e um total de 304 páginas.

Ambas as edições trazem catálogos com outros títulos nas páginas finais, o que é bem normal em livros de bolso. Quatro contos se repetiram em ambas as edições, foram eles: Ar Frio; A Música de Erich Zann; O Modelo de Pickman; e O Chamado de Cthulhu, obviamente.

Uma observação que julgo pertinente, pois evidencia a diferença com que as duas editoras trabalharam um mesmo material, é que um dos contos publicados pela edição da L&PM ganhou uma edição exclusiva pela Hedra em 2012, A Cor Que Caiu do Espaço. A edição d´A Cor Que Caiu do Espaço da Hedra também teve tradução de Guilherme da Silva Braga, introdução do tradutor e três textos de Lovecraft falando sobre o seu trabalho e de como ele pensava a ficção científica de sua época, além, claro, da história título do livro.

 Obviamente, a Hedra queria o público do Lovecraft mais do que a L&PM, pois apesar da menor quantidade de páginas por edição, há um material extra destinado a fãs: fãs específicos de Lovecraft; de horor/terror em geral; e de ficção científica em geral. Um público que anseia por informações além das histórias propriamente ditas. Porém, as introduções do tradutor nos volumes da Hedra mostram uma preocupação da editora em contextualizar a obra com a época e o lugar em que ela foi escrita para que eventuais novos leitores não se sintam traídos, enganados ou mesmo ofendidos com os editores e o tradutor, afinal, o autor é que era racista. O livro Território Lovecraft de Matt Ruff aborda, ainda que de forma ficcional, o racismo na obra de Lovecraft trazendo protagonistas e heróis negros, vale a pena ler.

O racismo em Lovecraft é uma parte espinhosa de sua obra. Sua aversão a sexo o colocava entre os mais retrógrados e reacionários entre os conservadores ainda em sua época. Mas porque ler, ainda hoje, a obra de alguém assim? As ideias nos textos de Lovecraft influenciam tudo o que temos hoje na cultura pop, não haveria Os Caça-Fantasmas, Alien, Arquivo X, The Walking Dead, só para citar alguns dos exemplos mais notórios hoje, sem a obra de Lovecraft.

Mesmo quando os personagens e nomes do universo de Cthulhu não estão presentes na obra dos influenciados por Lovecraft, as ideias dele estão lá, os conceitos estão lá, muitos papéis de personagens e monstros se repetem.

E qual seria essa grande influência? Lovecraft decidiu que todas as suas histórias aconteciam num mesmo mundo e a trama maior era de que a Terra, em sua insignificância cósmica, não passava de um planeta sendo cultivado para alimentar alienígenas que eram considerados deuses por povos mais antigos. Cthulho, o mais conhecido destes deuses alienígenas, seria apenas o que despertaria os mais poderosos. Os “heróis” Lovecraftianos lutam para adiar esse destino inevitável o máximo possível.

Mas este horror cósmico não foi a única influência de Lovecraft na cultura pop atual. O autor colaborava para uma revista pulp de terror/horror e, em vida, permitiu que os demais autores da revista usassem seus personagens e cenários. Ou seja, Lovecraft criou o primeiro universo ficcional compartilhado por autores e personagens da história. Isso antes dos super-heróis que ainda surgiriam.

Não se tratava apenas de vários personagens de histórias distintas que se encontravam. Agora, autores diferentes produziram histórias com um mesmo núcleo de personagens e cenários ampliando a obra de Lovecraft com a autorização do mesmo. Isso foi e é a base para os universos de super-heróis das gigantes DC e Marvel, bem como da narrativa compartilhada dos jogos de RPG de mesa.

Assim sendo, temos: a obra de Lovecraft propriamente dita, os textos escritos por ele; a obra dos autores que usaram o universo de Lovecraft com a autorização dele em vida; os autores que deram (e dão) continuidade ao universo de Lovecraft; autores de outras mídias que adaptaram a obra de Lovecraft (sobretudo para cinema, quadrinhos e jogos); autores que até usam o material de Lovecraft, mas com interpretações renovadas, releituras de fato, como é o caso de Matt Ruff, Alan Moore e tantos outros; e autores que, mesmo não usando nomes e cenários de Lovecraft, usam as ideias e conceitos deixados por ele. Mas esse multiverso Lovecraft talvez vire assunto para um próximo texto.

Voltando ao foco deste texto e concluindo: vemos então duas formas diferentes de publicação de um mesmo material. Dois livros diferentes com um mesmo título, de um mesmo autor, mas com propostas editoriais bem diferentes. “E qual é a melhor?”, você me pergunta. E eu respondo, depende do que você, como leitor(a), quiser na hora de experimentar Lovecraft pela primeira vez. Você quer uma edição mais barata possível? Hedra. Você quer uma edição barata, mas caprichada? L&PM. Você quer edições fáceis de achar em bibliotecas? Ambas as editoras e muito mais. Você quer informações para além do texto de ficção, uma contextualização maior? Hedra. Você não quer se influenciar pela opinião do tradutor ou do editor? L&PM. Você não está preparado para levar facadas no coração? Hedra.

Fora que Lovecraft está em domínio público, Hedra e L&PM não são as únicas editoras que publicam este material, várias editoras publicam ao mesmo tempo O Chamado de Cthulhu no Brasil e no mundo, você pode verificar várias opções nas livrarias reais e virtuais e até em bibliotecas públicas. Fora que, se você tiver uma boa leitura em inglês, ou se você estiver aprendendo inglês, os textos originais estão disponíveis gratuitamente na Internet, pois são de domínio público. Ou seja, a Hedra e a L&PM são duas opções num mar de possibilidades quando o assunto é a inicialização da leitura de um(a) autor(a) caído(a) em domínio público, como é o caso de Lovecraft, mas de muitos outros, tanto estrangeiros, quanto brasileiros.

E antes de terminar, se algum leitor quiser começar a ler Lovecraft pela ordem original de publicação de seus contos, há uma lista na Wikipedia, tanto em inglês (https://en.wikipedia.org/wiki/H._P._Lovecraft_bibliography), quanto em português (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_obras_de_H._P._Lovecraft). Tendo em vista eventuais mudanças de traduções de títulos, talvez o voluntário da versão em português tenha optado por manter os títulos dos contos em inglês.

Boas leituras, até breve!

Rodrigo Rosas Campos


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