quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

[Resenha] A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Outros Contos de Washington Irving

    A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Outros Contos de Washington Irving é uma publicação da editora Wish que traz quatro contos de terror: o conto título, o original do Cavaleiro Sem Cabeça; Rip Van Winkle; O Noivo Espectral (e a Cozinha da Estalagem); e O Diabo e Tom Walker. Este volume, editado por Marina Avila pela editora Wish, também conta com um prefácio de Oscar Nestarez e uma introdução de Jim Anotsu, mas antes, vamos as histórias:

    A primeira e mais famosa, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça é bem arrastada, mas é muito boa. Aliais, sua melhor parte é o tanto como ela é aberta para o passado e para o futuro. Muitas adaptações distintas para o audiovisual já foram feitas a partir desse conto e ele se presta verdadeiramente a diferentes interpretações e visões.

    Sleepy Hollow abriga vários fantasmas além do mais famoso, o Cavaleiro Sem Cabeça, que era um mercenário alemão a serviço da coroa Inglesa e que lutou na Guerra da Independência dos EUA contra os americanos. Morreu quando uma bala de canhão acertou sua cabeça decapitando-o e o condenando a procurar sua cabeça perdida pelo resto da eternidade.

    Segundo a história de Irving, Ichabod Crane, um professor que veio de longe e que se apaixona pela filha do fazendeiro mais rico da região, viveu um dos muitos encontros, que não foi o primeiro e nem o último, com os fantasmas do cavaleiro e de seu cavalo infernal. Diga-se de passagem, a ideia de que outros fantasmas e outras histórias habitam aquele lugar é incrível. As possibilidades de interpretações distintas para a história de Crane geraram as mais variadas adaptações do texto de Washington Irving.

    E, neste caso, cada adaptação para outra mídia, cinema ou desenho animado, acaba por tomar liberdades que o próprio texto original sugere e permite de acordo com a visão de que quem está adaptando o roteiro e/ou fazendo a direção. Ou seja, A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça propõe possibilidades de interpretações e de reimaginações completas. É nesse ponto que reside sua força até os dias de hoje. Mais do que uma história, Irving criou um cenário maior que pode ser usado até os dias de hoje.

    Agora, vamos aos outros 3 contos do livro. Começando por Rip Van Winkle, ele é um sujeito pacato, que vive uma vida bem simples e um dia se encontra com espíritos das montanhas, bebe a bebida deles, dorme nas 13 Colonias e acorda depois da independência dos EUA. Como um excelente exemplo de narrador não confiável, caberá a cada leitor(a) acreditar ou não no sobrenatural.

    O Noivo Espectral (e a Cozinha da Estalagem), uma cozinha de estalagem é palco para contadores de histórias e uma delas é sobre jovens noivos nobres. Um casamento arranjado, um noivo prometido morre e um amigo deste deve levar o recado ao castelo da família da noiva. Porém esse amigo se encanta pela jovem nobre e a recíproca é verdadeira, e agora? Ele conseguirá transmitir a mensagem?

    Em O Diabo e Tom Walker, um tesouro de pirata é guardado por um demônio e este tentará o avarento Tom Walker e sua avarenta esposa. Ambos serão levados a lutar pelo tesouro, são um casal, mas será cada um por si. Confesso que esperava mais dessa história, mas ela é realmente boa. O conto é um tanto problemático ao mostrar um casal de avarentos em uma relação abusiva de ambas as partes, mas logo a história muda de foco. O infame e avarento Tom Walker ainda possuí limites morais e tentará ludibriar o diabo. Conseguirá?

    No geral, nunca vi tantos detalhes em histórias tão curtas. Washington Irving escreve grandes “barrigas” em histórias incrivelmente curtas, daí a profusão de adaptações de suas obras em teatro, cinema, TV etc. e as diferenças entre elas. Narrativamente, seus personagens são pessoas bem mundanas, com vidas bem cotidianas e banais, descritas e narradas de forma minuciosa para que o leitor valorize os encontros destes personagens com o sobrenatural, seja este sobrenatural terrível como um Cavaleiro Sem Cabeça, encantador como uma festa em torno de uma bebida mágica que faz dormir por décadas ou perfeitamente explicável.

    Enfim, é um autor que precisa de leitores realmente dispostos a experimentar formas narrativas verdadeiramente antigas. Influenciou e influência gerações direta ou indiretamente de forma incontestável. É uma leitura agradável, mas arrastada, ainda que as histórias sejam realmente curtas e boas. É um daqueles casos em que as forças das ideias superam a simplicidade e os textos em excesso. Basicamente, Washington Irving mistura história e lendas forjando sua ficção como uma amalgama de imaginação e realidade.

    Sobre a edição, agora vamos aos textos extras: dica, deixe para lê-los no final. Marina Avila, editora-chefe e dona da Wish, chamou dois especialistas para fazer um prefácio e uma introdução. Mas por que não simplesmente traduzir e publicar os contos? Para contextualizar os leitores do presente na época em que os textos foram escritos. Isso foi necessário em virtude de elementos da época de Washington Irving, que viveu a independência dos EUA, mas não o fim da Guerra da Secessão, ou seja, há elementos na história que são bem problemáticos para os dias de hoje.

    O prefácio de Oscar Nestarez fala especificamente sobre Washington Irving, sua vida, suas influências e o contexto histórico em que nasceu, viveu e morreu. Irving tinha como dois de seus maiores interesses a história e o folclore dos EUA e do mundo. Entre as influências do autor vemos que ele usou outros cavaleiros fantasmas, sem cabeças ou não, para forjar um, até então novo, especialmente criado para assombrar os EUA.

    Como complemento a isso, a introdução de Jim Anotsu foca no racismo estrutural da época de Irving por conta de passagens específicas de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça. Tendo isso em vista, foi uma grata surpresa quando até mesmo o infame Tom Walker recusou um pedido do diabo para se tornar um escravista, isso seria descer baixo demais até para ele.

    A obra de Washington Irving é a prova viva de que toda ficção é política, pois toda história fictícia reflete, direta ou indiretamente, a história política, o contexto e o espírito do tempo em que foi concebida. Enfim, entre cortar os trechos problemáticos, que seria uma censura a um passado histórico, ou explicar o contexto da época, 1820, optou-se por explicar o contexto da época trazendo dois especialistas.

    Não a toa, o trabalho da editora Wish é louvável em resgatar materiais antigos sem passar pano para os erros históricos passados que, eventualmente, são retratados nas obras de ficção que, como frutos de seus tempos, por melhores e mais universais que sejam, guardam as máculas das épocas e dos lugares em que foram produzidas.

    Feitos estes esclarecimentos, o livro A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça e Outros Contos é uma leitura agradável e, certamente, muita inspiradora. Se você gosta de criar suas próprias histórias ou de jogar RPG, há um cenário pronto e bem ambientado ali. O trabalho gráfico da editora é um primor, uma atração a parte, o livro é ricamente ilustrado com gravuras de várias épocas, incluindo as atuais feitas para a edição.

    Em uma promoção na loja da Dark Side, o livro foi R$ 65,45 mais eventual frete, também havia frete grátis em compras acima de um valor que não lembro mais e não sei se a promoção ainda vale. Para quem não conhece a editora Wish, ela é uma das editoras que costumam publicar no Brasil textos e livros que, apesar de estarem no domínio público há décadas, nunca foram publicados no Brasil ou que raramente foram republicados no Brasil. Uma tendência desde os anos 2000 para preencher lacunas históricas de nosso mercado editorial. Mas ao contrário da maioria das editoras de seu segmento, o catálogo da Wish também é formado por livros contemporâneos, com coletâneas de novos autores e destaque para a pesquisa documental The Five.

Boas leituras,

Rodrigo Rosas Campos

2 comentários:

  1. Não sabia que A lenda do cavaleiro sem cabeça se passava na guerra de secção Americana. É isso né? Esse livro é interessante. Ótima resenha. Grande abraço, Caramujo. Mônica

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    1. Cada conto é de um ano e o autor escreveu entre a independência e a secessão. Mais detalhe no livro, sóu péssimo para datas.

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