quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

[Resenha] Pancadaria: Por Dentro do Épico Conflito Marvel Vs. DC de Reed Tucker


    Eu sei, esse livro saiu em 2017 nos EUA e em 2018 no Brasil, sob vários aspectos, ele já está defasado em relação a 2024, quando escrevo esta resenha. Mas esperei ele baratear e o comprei a R$ 22,50 esquecido numa livraria. Seu preço foi muito caro em seu lançamento. Quase uso o título “Garimpando em Gibiterias Especial – Livro”, mas eu não o comprei usado, o achei tão desvalorizado quanto os mais atuais quadrinhos (e filmes) da Marvel e da DC numa livraria de novos mesmo.

    No início da leitura, fiquei comparando ele com o livro específico da Marvel, mas logo vi que isso seria um engano. O livro de Reed Tucker é focado em perspectivas de quem estava dentro das chefias das duas empresas e do mercado de quadrinhos estadunidenses durante esse conflito. Aqui, a narração de Tucker é entrelaçada por citações de pessoas que ele entrevistou ou que ele coletou na imprensa norte-americana especializada em quadrinhos de super-heróis, sim, isso existe lá fora.

    Outro diferencial é a coleta de depoimentos de lojistas de gibiterias norte-americanas (comics shops) que, ao longo das décadas, levaram “tiros” da Marvel e da DC ao mesmo tempo. É um recorte bem preciso e milimétrico da história. Tucker revela coisas que não estão no livro laranja sobre a Marvel, mas traz bem menos informações sobre as histórias das editoras. O enfoque é o detalhamento do conflito por quem sofreu ele por dentro.

    Temos a perspectiva de editores, dos grandes autores e desenhistas, ou seja, se o seu autor obscuro favorito de um personagem igualmente obscuro da Marvel ou da DC não aparecer no livro, é porque além de ser um autor obscuro de um personagem igualmente obscuro, ele nunca foi editor de nenhum título nem na Marvel, nem na DC.

    No fim, não é um livro sobre quadrinhos, é um livro sobre o ambiente corporativo numa relação de concorrência não saudável que afeta negativamente até os vendedores varejistas e os consumidores finais, neste caso, os parcos leitores envelhecidos que ainda compram quadrinhos da DC e da Marvel. Reed Tucker começa falando de quando ele próprio foi criança nos anos 1980 e de como as gibiterias dos EUA já estavam se tornando ambientes tóxicos desde então.

    O início do livro é truncado, afinal a história começa nos anos 1960 e tanto a DC como a nascente Marvel tinham funcionários que estavam no mercado desde os anos 1930, nem todos os envolvidos puderam falar com Tucker, o autor teve que recorrer a jornais, revistas, livros e fanzines para ter contato com algumas informações e declarações.

    A escrita de Tucker começa a brilhar quando Jenette Kahn entra na DC assumindo o comando. O livro melhora tanto com a entrada dela na história, que tenho a sensação de que o que ele queria mesmo era contar a história de Jenette Kahn. Quando ela se aposenta, o livro volta a perder o brilho extra, mas já está acabando.

    A rivalidade começa bem no início da ascensão da Marvel, com a galhofa marqueteira de Stan Lee. Verdade seja dita, Stan Lee não subestimou a inteligência de seu público na hora de escrever e, em um período relativamente rápido, começou a vender mais que a DC com suas cocriações com Kirby, Ditko, Romita, Everett etc. Ele botou os créditos nos quadrinhos e os leitores sabiam quem estava fazendo o quê em cada edição. Ainda assim, era (e, nos casos da DC e da Marvel ainda é) sob aquele sistema hediondo em que os profissionais cediam os direitos autorais para a empresa e só recebiam por página; mas pôr os nomes nos créditos já foi suficiente para irritar a DC, que nem isso fazia. Segundo os mandachuvas da DC nos anos 1960, quem gosta do Superman tem que gostar do Superman, não de quem escreve e de quem desenha.

    Todavia, Lee começou a hostilizar a antiquada DC fazendo os leitores da Marvel se sentirem autorizados a hostilizar os leitores da DC na ponta extrema do processo. Isso foi nos anos 1960, muito antes das redes sociais. Lee dividiu uma bolha em duas, uma vez que super-heróis em quadrinhos já eram um nicho reduzido cujo último crescimento foi até os anos 1980, quando o público parou de se renovar e começou a encolher e a envelhecer. Enfim, o publico até se renovou, ainda que de forma bem polarizada, até os anos 1980 e começou a envelhecer e a não se renovar mesmo. “E os recordes de venda nos anos 1990?” - esse recorde já foi resultado de especulação, não havia tantos leitores lendo de fato da DC ou da Marvel. Muitos leitores abandonaram ambas nesta época.

    Voltando a Jenette Kahn, ela entra na DC, mas, nesse meio tempo a DC cai no colo da Warner; falemos a verdade, a DC foi imposta para a Warner por um grupo de especuladores que atirava para todos os lados. Enquanto a Warner ignorava a DC, Stan Lee sempre quis filmes da Marvel e se esforçou para licenciar, sendo seu maior sucesso a série de TV do Hulk. Fora isso, tudo que Lee e os mais antigos chefes da DC conseguiram foi criar um ambiente de hostilidade tal que contaminava eventualmente até os leitores e os funcionários das duas empresas.

    Jim Shooter, que fora hostilizado na DC quando escreveu uma fase memorável da Legião dos Super-Heróis no estilo Marvel, chega na Marvel carregado de rancor, virando o editor-chefe mais odiado da história da Marvel, pois replicou na Marvel os abusos que sofrera na DC. Isso prejudicou o encontro da Liga da Justiça com os Vingadores por décadas.

    Neste contexto, Jenette Kahn é mostrada como alguém que tentou levar bom-senso a esse caos. Como ela não alimentava a rivalidade, na gestão dela os funcionários não estavam com medo de serem descobertos se confraternizassem com os da outra empresa. É notório o quanto o autor do livro Reed Tucker respeita as atuações de Jenette Kahn ao longo do tempo. É com a entrada dela na história que o texto ganha brilho e pega o leitor.

    Da parte da Warner, ela só olhou de fato para a DC quando a Marvel estava fazendo sucesso com o universo cinematográfico. Pondo o carro na frente dos bois, Snyder em seu “murderverse” tenta acelerar o sucesso da Marvel para a Warner, mas fracassa nas bilheterias (ao menos para os padrões Warner e em comparação com a Marvel/Disney).

    Enfim, se eu falasse tudo, esta resenha teria que ser tão grande quanto o livro sobre o qual ela fala. A parte interessante do livro é o enfoque bem específico nos cabeças das editoras e nos conflitos entre as empresas ao longo das décadas que acabou transbordando e contaminando até a Warner e a Disney em baixarias trocadas em redes sociais, o quanto isso prejudica os fãs das duas marcas e os vendedores do varejo de quadrinhos nos EUA.

    O ponto fraco desse livro é que até a história da própria DC é melhor abordada no livro laranja da Marvel, uma história secreta (nunca acerto o título desse livro). Casos como as histórias independentes nos selos Epic e Vertigo não são abordados. O selo Vertigo é até citado, mas restrito a parte adulta do universo DC que se emancipou dos super-heróis na época e que pertencia a empresa previamente. Salvo V de Vingança, as demais séries autorais na Vertigo e na Ws não são nem mencionadas. Enfim, Pancadaria é, especificamente, sobre como os cabeças da DC e da Marvel, os fãs e os varejistas americanos sofreram com essa concorrência estúpida ao longo de décadas e de como isso, estranhamente, se estendeu para os filmes e séries de TV.

    Por vários motivos, tenho que reconhecer que Stan Lee não foi um reles farsante, basta ver os trabalhos de Ditko e Kirby sem ele nos roteiros e nos diálogos. Porém a triste conclusão a que podemos chegar ao terminar essa leitura é que as maiores e mais influentes criações de Stan Lee não foram o Homem-Aranha ou o Quarteto Fantástico etc., foram a polarização e a cultura de ódio muito antes da Internet e das redes sociais. Não me importa se Lee teve dolo ou culpa; que ele só queria vender gibis; se a intenção era boa, fazer os quadrinhos deixarem de ser estigmatizados etc.; Stan Lee ensinou o mundo a como polarizar pessoas e fazê-las se odiar em tribos opostas usando como cobaias leitores de quadrinhos de super-heróis. Deixe seu comentário com carinho e educação, de preferência, depois de ler, ao menos, o livro Pancadaria inteiro.

    Quase esqueço, o epílogo do livro nos lembra que quadrinhos não se restringem a DC ou Marvel e nem a super-heróis. Não aguenta mais ler histórias velhas redesenhadas como se fossem novas de personagens que foram originais mas que estão anacrônicos tanto da DC quanto da Marvel? Olhe a produção de quadrinhos como um todo. Gosta de super-heróis? Super-heróis fora do eixo DC/Marvel também existem aos montes. Sugiro Astro City, de propriedade de seus autores e que, hoje, é publicado e republicado nos EUA pela Image.

Boas leituras,

Rodrigo Rosas Campos

2 comentários:

  1. Like. Um livro sobre livro 🙌 Mônica

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    1. Na verdade, um livro sobre marcas registradas vinculadas em quadrinhos.

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