Desaconselhável para menores de 18 anos.
Publicado pela editora Pipoca e Nanquim em edição de luxo, preço de R$69,90 mais o eventual frete, este álbum não só traz uma história inédita de Roy Thomas (texto), Esteban Maroto (arte) e Santi Casas (arte) como traz também o conto original (em prosa) A Sombra do Abutre de Robert E. Howard. E é claro que eu comecei a ler pelo conto original.
Em A Sombra do Abutre de Robert E. Howard, conhecemos Red Sonya de Rogatino. Sim, Sonya com y. E antes de entrar nas duas histórias publicadas no volume, vou contextualizar como a Sonya de Rogatino virou a Sonja da Hirkânia pelas mãos de Roy Thomas na Marvel. As diferenças entre Sonya e Sonja vão muito além da grafia.
Robert E. Howard não escrevia só espada e feitiçaria, ele também escrevia ficção histórica. A Sombra do Abutre não é espada e magia, e sim ficção histórica. Ficção histórica? Ficção histórica é um gênero de ficção baseado na história, onde o autor mistura personagens fictícios com personagens reais, sendo estes trabalhados de forma ficcional, mas respeitando minimamente os acontecimentos reais.
Assim, o sultão Solimão e sua esposa Roxelana e a vida deles serviram de pano de fundo para a fictícia irmã de Roxelana, Sonya. Ou seja, em resumo, ficção histórica é uma fã fic honesta da história real. Como os leitores mais atentos já notaram, nesta reimaginação da história real nem tudo está liberado, não existe magia na vida real, logo a única história de Red Sonya não é do gênero espada e feitiçaria, pois não tem magia, nem feitiçaria.
Outro detalhe, A Sombra do Abutre tem como pano de fundo os conflitos entre muçulmanos e cristãos por vota de 1529. O conto foi originalmente publicado nos EUA em 1934. Sonya é apresentada como uma eximia espadachim e hábil com mosquetes, canhões e o que era chamado de pistolas em 1529, armas de fogo bem rudimentares que precisavam de uma distância bem grande e de muito tempo para serem preparadas, carregadas e disparadas.
A Sonya de Howard trajava roupas equivalentes às de seus pares homens, ou seja, nada de pele a mostra. Ela é descrita como forte e até sensual em seus movimentos, mas não há uma exploração visual da figura feminina. Ela é uma guerreira e é tratada como igual ou superior entre seus pares masculinos.
Dando um salto no tempo, chegamos na Marvel. Os quadrinhos do Conan já eram um sucesso, mas faltava uma protagonista feminina que não estivesse presa aos contos originais de Robert E. Howard e nem de seus continuadores, como eram Bêlit (que morreria), Valéria (que estava distante dos quadrinhos na época) e Zenóbia (rainha da fase rei). Mas Roy Thomas também não queria se afastar tanto dos conceitos do autor de Conan.
Consultando um conhecido, Roy descobriu A Sombra do Abutre e adaptou a história para que ela se encaixasse no contexto da Era Hiboriana de Conan, assim surge Red Sonja, cujo j se pronuncia y (ou como i na língua portuguesa). A história foi adaptada por Roy Thomas (texto) e Barry Windsor-Smith (arte) e a ideia é que essa personagem pudesse ser usada em várias histórias diferentes. Red Sonja surge como uma personagem híbrida, ela tem uma fonte vinda do criador do Conan, mas não é a personagem original. Um elemento que pode inserir histórias novas às lacunas da história maior de Conan deixadas por Robert E. Howard.
Mas estamos falando da Marvel, Stan Lee achou que a Sonja de Barry Windsor-Smith estava vestida demais, fiel demais às descrições da Sonya original. Afinal, Smith deu a Sonja uma cota de malha funcional para a era hiboriana.
Eis que entra Esteban Maroto e executa a ordem de Stan Lee de deixar a maior quantidade de pele a mostra possível. Assim nasce o biquíni de ferro que consagraria Sonja para a revolta justa das mulheres ao longo dos anos seguintes. A primeira aparição de Sonja era bem fiel a história de Sonya, mas substituía Gottfried von Kalmbach, um alemão loiro, pelo Conan, bem como mudava os nomes dos demais personagens recontextualizando-os a era hiboriana. Agora sim, vou falar de A Sombra do Abutre de Robert E. Howard:
O sultão Solimão reconhece o alemão que o feriu em combate, Gottfried von Kalmbach, mas não pode mandar matá-lo oficialmente em público, pois que isso seria admitir um erro passado e um sinal de fraqueza. Assim, com sede de vingança, coloca um assassino no encalço de Gottfried, Mikhal Oglu, para matá-lo. Oglu, usa penas de abutre em suas dragonas e está disposto a destruir tudo e todos em seu caminho pela cabeça de Gottfried.
Nesta caçada, cidades e vilarejos são chacinados até que Gottfried encontra Sonya, uma guerreira ruiva que sabe atirar e bramir um sabre, que se diz irmã de Roxelana, uma das preferidas de Solimão e que vê na irmã uma traidora. Sonya salvará a pele de Gottfried várias vezes até se dar conta do que está acontecendo.
Sem entrar em muitos detalhes e spoilers, a história de Howard inverte os papéis e é a guerreira Sonya que salva o apatetado guerreiro de várias situações de perigo até o confronto final com Oglu. Mesmo sendo descrita como uma bela e desejável mulher, a Sonya de Howard não é objetificada. Suas roupas são funcionais para o combate e para a guerra. Ele é uma guerreira igual ou superior aos seus pares homens. Note que isso é uma ficção histórica, a habilidade de Sonya não é explicada por magia ou dádiva divina, é uma habilidade honesta de uma mulher que luta na guerra e que sabe usar a espada e armas de fogo.
Agora vou falar de Sonja, a Balada da Deusa Ruiva, essa sim, uma história em quadrinhos de Roy Thomas, Esteban Maroto e Santi Casas. Em primeiro lugar, esta é uma história da Sonja de Roy Thomas, passando por sua origem na era hiboriana e revelando como ela adquiriu o biquíni de ferro. Mas, como a personagem andrógina aedo deixará bem claro (ainda que de forma elegante), esta nova era hiboriana não é mais a mesma da Marvel. Aqui, a origem de Sonya é contada sem passar pela adaptação da história original e nem pela cota de malha de Barry Windsor-Smith.
A desculpa do biquíni de ferro continua a mesma, os homens lascivos se distraem, ela aproveita e os mata, ou seja, a lascívia dos inimigos é usada contra eles. Na vida real, sabemos que o alvo do biquíni de ferro é atrair a lascívia dos leitores para as compras de quadrinhos. Mas não dá para cancelar Roy Thomas, Esteban Maroto, Stan Lee, os atuais detentores da marca Sonja e a Marvel enquanto empresa por alguns motivos:
O primeiro é que se não fosse a transformação de Sonya em Sonja em 1973 e o sucesso nos anos seguintes com o biquíni de ferro de Maroto, o conto A Sombra do Abutre e sua protagonista feminina forte, Sonya, estariam fadados ao esquecimento. A Sombra do Abutre era o único texto de Robert E. Howard que não havia sido republicado desde sua publicação original numa revista pulp até a década de 1970. Este resgate do conto original é o maior mérito de Roy Thomas.
O segundo motivo é a época, 1973: onde quadrinhos de aventura, terror e super-heróis eram voltados para um público predominantemente jovem e masculino.
O terceiro motivo era a mentalidade da época: nas décadas de 1970, 1980 e 1990 as mulheres compraram biquínis cada vez mais curtos na vida real. Sonja vivia num mundo de fantasia destinado a um público masculino e jovem, poucas mulheres reclamaram, pois poucas se interessariam em comprar a revista.
Polêmicas a parte esta nova releitura da Sonja por Roy Thomas, Esteban Maroto e Santi Casas é uma excelente história em quadrinhos fechada, graphic novel, e merece ser experimentada de coração aberto. E eu ainda não falei da história:
Red Sonja: A Balada da Deusa Ruiva começa num reino tomado pelo enlouquecido conquistador Thallos. Ele partiu em uma busca pela fonte da vida a fim de tornar-se imortal e conquistará ou destruirá quantos reinados forem necessários até achar a fonte da vida e da imortalidade real. Eis que a/o menestrel do reino revela a Thallos a existência de uma guerreira que, guiada por uma deusa, bebeu da fonte da vida. Uma guerreira de cabelos ruivos chamada Sonja. Ir além daqui é dar spoilers.
Para vocês, mulheres que leem esta resenha, eu sei que a personagem Sonja é problemática hoje assim como a história de origem que Roy Thomas mantém. Não podemos repetir erros passados. Os tempos mudam, etc., mas mesmo assim foi revolucionário em sua época. Outro detalhe é que vocês podem procurar o conto original sem a história em quadrinhos e conferirem a Sonya original se quiserem graças a Sonja de Roy Thomas.
O conto A Sombra do Abutre de Robert E. Howard já foi inclusive publicado no Brasil pela Editora Arte & Letra num livro fininho só dedicado a ele; consegui encontrá-lo a venda hoje em livrarias virtuais. Além de não ter as polêmicas da versão de Roy Thomas, a Sonya de Robert E. Howard é muito melhor!
Em compensação, os desenhos de Maroto e Casas são obras de arte inquestionáveis com ou sem polêmicas. E eu gostei, me julguem.
Além do conto original A Sombra do Abutre, o livro traz os extras de praxe: depoimentos dos autores e desenhistas, esboços, anotações dos autores do quadrinho e considerações do tradutor, Alexandre Callari. Concluindo, Robert E. Howard foi o escritor criador de Red Sonya, Conan, Kull, Salomão Kane entre outros personagens consagrados hoje. É o pai do gênero sword and sorcery, espada e feitiçaria ou espada e magia.
Boas leituras!
Rodrigo Rosas Campos
Excelente resenha. E que polemizem a vontade.
ResponderExcluirConcordo, polêmicas e discussões são sempre bem vindas! Obrigado pelo seu comentário! Volte sempre, abraço!
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